Oficinas de artesanato, música, poesia e teatro despontam como ferramentas para o tratamento da dependência química.
O polegar usado para atiçar o isqueiro e acender freneticamente o
cachimbo agora tem outra função. As mãos de Índio, 37 anos, há quatro
meses, fazem arte. Transformam lixo em quadros e murais, em um processo
realizado dentro de um ateliê instalado na Cracolândia – região da
capital paulista que acumula, a céu aberto, milhares de pulmões e
cérebros devastados pelo crack.
Com os dedos torturados pelos 20 anos passados na rua,
Índio – que nasceu Cícero Rodrigues e ganhou o apelido devido aos traços
caboclos herdados da avó – usa o artesanato para driblar a dependência
química de forma autodidata, “por instinto”. Mesmo sem ter consciência
disso, ele mira a abstinência usando uma ferramenta terapêutica que
ganhou os consultórios, as clínicas e os centros de saúde espalhados por
todo País.
Psiquiatras, psicólogos e educadores enxergaram no
artesanato, no samba, no rap, no funk e na poesia uma maneira eficaz de
tratar o uso compulsivo de álcool e drogas. Os resultados da chamada
arteterapia para a dependência começam a aparecer catalogados em
pesquisa. Um indicativo de caminho de conduta médica para uma área da
saúde mental que ainda ostenta o índice de 45% de falha na recuperação
dos pacientes.
Uma das obras de Arthur Bispo do Rosário que foi exposta em Londres
Índio passou a fumar menos crack quando ingressou na rotina
artística. José Benedito Leal, 45 anos, deixou de esconder as garrafas
de cachaça no armário da faculdade onde lecionava após descobrir-se
poeta.
“Nenhuma gota há cinco anos e milhares de versos produzidos no período”, conta ele, pós-graduado em Matemática.
Maurício Same, 32, também abandonou a bebida –
responsável por fazer dele um morador de rua em Praia Grande (litoral
paulista) – depois de ouvir o som que produzia com as cordas do violão.
“Estou limpo há um ano. A primeira música inteira que toquei sóbrio foi ‘Tente outra vez’, do Raul Seixas”, diz.
Oficiais da Marinha de Salvador foram estimulados a tratar o alcoolismo em cima do palco, brincando de serem atores de teatro.
“A arte faz parte da terapia ocupacional, área já
consolidada no Brasil como política de saúde pública. Não há motivo
nenhum para excluir os pacientes da saúde mental destas ferramentas. Ao
contrário. Os resultados são excelentes”, afirma o psiquiatra Leonardo
Araújo de Souza, diretor do Instituto Nise da Silveira do Rio de
Janeiro.
“Arte de resgate”
A instituição pública fluminese dirigida por Leonardo
oferece aos 220 pacientes internados oficinas de samba e percussão. Todo
ano, eles colocam na rua o bloco de carnaval. A entidade, inclusive,
foi batizada em homenagem a uma precursora da arte como remédio para a
saúde mental.
Nise (1905-1999), na década de 1940, descobriu no traço
artístico uma arma para substituir os eletrochoques e o confinamento nos
manicômios, formas controversas e torturantes usadas em depressivos,
esquizofrênicos e dependentes químicos da época. Um de seus pacientes
foi Arthur Bispo do Rosário – cujas obras ganharam o mundo e foram tema
da última Bienal de Artes de São Paulo.
No legado de Nise, não estão apenas descobertas de
artistas famosos e anônimos. O psiquiatra Luiz Guilherme Ferreira Filho
acredita que este olhar médico sobre os efeitos da arte foram
fundamentais para implementar os planos de humanizar o tratamento e
promover reinserção social dos pacientes – dois pilares definidos pelo
Ministério da Saúde como fundamentais para vencer o crack, a cocaína, o
alcoolismo e o uso de maconha.
Hoje, de acordo com o último censo do Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), 10% da população
brasileira (19 milhões de pessoas) necessitam de intervenção médica para
tratar o vício.
Arte é neurociência. "Por meio da pintura, da música, do
artesanato você alcança o inconsciente do paciente e restabelece o
mecanismo de recompensa cerebral, deturpado pela droga”, diz Ferreira
Filho.
“Amplia o repertório de atuação do paciente. Ele, ainda
que não tenha talento, descobre que há outras formas menos nocivas de
ter prazer. Não é arte bela e nem feita para estar em galerias. É arte
de resgate.”
Sarau da abstinência
Foi estudando a reação cerebral dos dependentes químicos
que Ferreira Filho decidiu implantar oficinas de arte no Centro de
Atenção Psicossocial (Caps) de Praia Grande. Duas vezes por semana, 40
pacientes em tratamento são convidados a sentar em roda e mostrar os
talentos escondidos ou nunca identificados, por conta do uso de droga.
“
Eu
sou mosca presa na janela. Quero voar sem incomodar ninguém. Deixar de
ser mosquito, que pica, suga e vai embora. Quero ser mosca. Quero ser
livre. José Benedito.
Em uma dinâmica típica de sarau, cada um vai ao centro do
círculo e canta, declama, pinta um quadro. O matemático José Benedito
descobriu assim a vocação para usar as letras em versos. No dia em que a
oficina foi acompanhada pela reportagem, ele puxou de improviso o poema
“mosca presa na janela”, de sua autoria (leia ao lado). Maurício criou
melodias. Maria do Socorro fez o público chorar ao desafinar, mas sem
sair do ritmo, as estrofes sertanejas de Menino da Porteira. Há dois
meses, a produção do “sarau da abstinência” do Caps virou mostra
cultural no teatro municipal da cidade.
“Aberta ao público. Foi sucesso”, comemora o psiquiatra.
Experiências particulares
Já as técnicas teatrais voltadas ao alcoolismo, recurso
idealizado pela psicóloga Thaís Gold, não chegaram à nenhuma plateia.
Mas o método artístico ingressou na faculdade. Tudo começou quando Thaís
foi convidada a realizar um trabalho com oficiais da Marinha de
Salvador (Bahia) que apresentavam uso nocivo de álcool e drogas.
“Sabia da resistência que enfrentaria caso elaborasse uma
apresentação de Power Point, com dizeres sobre drogas. Então, tive a
ideia de usar Augusto Boal e o teatro do oprimido (técnica em que os
participantes fazem jogos de cena, representando o cotidiano). Deu tão
certo que hoje, na faculdade onde eu leciono, incentivo meus alunos a
usarem o teatro terapêutico”, conta Thaís.
Levy Seya Maeda, 28 anos, confirma que as experiências
artísticas, ainda que particulares, são incentivos ao primeiro passo na
direção da sobriedade. Ele, que dos 14 aos 24 de idade caminhou por
todos os tipos de drogas, foi resgatado quando trocou as pedras de crack
pelas miçangas coloridas.
“Aprendi a fazer pulseiras, presenteei a família toda.
Não tenho talento manual, os acessórios são bem ‘mais ou menos’ mas o
artesanato me colocou no mundo sem ser clandestino. Tanto que é uma
ferramenta que uso bastante na clínica (Novo Mundo, em Itu – interior
paulista) para dependentes químicos, onde hoje trabalho e da qual virei
coordenador.”
Sem mágica
A dependência química é doença considerada epidemia pela
Organização Mundial de Saúde (OMS). As causas são múltiplas, passam pela
genética e exigem terapia, medicamentos, em alguns casos internação,
resume o psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
Dartiu Xavier.
Neste contexto, não há um psiquiatra ou psicólogo que
defenda a arte como remédio mágico para o uso compulsivo de drogas.
Índio, o artista da Cracolândia paulistana, só pondera que talvez, “se
conhecessem meu trabalho, as pessoas parassem de ter medo de mim. Elas
me olhariam como ser humano e não monstro”, diz ele, enquanto finaliza o
quadro para embelezar as paredes de algum lugar, “ainda não definido”.