Para mergulhar um Estado na mais completa desordem, tudo o que a polícia
tem a fazer é nada fazer – e os ladrões, traficantes, agitadores e
saqueadores "profissionais" e de ocasião cuidarão do restante. As cenas
de saques e vandalismo em Pernambuco, mergulhado numa crise de segurança
pública após três dias de greve da PM e dos bombeiros, saltaram para o
topo da pauta dos governadores, principalmente onde há cidades-sede da
Copa do Mundo. Quem não acordou para o problema será despertado de forma
estridente na próxima quarta-feira, quando está prevista uma
paralisação nacional dos policiais, com convites às forças militares,
civis e federais. O protesto, programado propositalmente para as
vésperas da Copa, traz o risco de novas situações de tensão, com
possíveis consequências nas urnas, a cinco meses das eleições de 5 de
outubro.
É certo que o salário do policial no Brasil é baixíssimo. E também não
há dúvida de que em qualquer movimento como o de agora há quem queira
navegar nos ventos da convulsão social. O terceiro componente do
problema é a forma desastrada como as negociações desse tipo têm sido
conduzidas. Ex-secretário adjunto de Defesa Social de Minas Gerais e
professor da PUC-MG, o sociólogo Luis Flavio Sapori avalia que
governadores têm tratado reivindicações trabalhistas de policiais como
afronta à autoridade. Em 2012, bombeiros, PMs e policiais civis
rebelaram-se em vários Estados. A baderna maior se deu na Bahia,
agravada pela postura vacilante do governo do petista de Jacques Wagner.
Com militares de braços cruzados, Wagner deixou a situação correr, não
estabeleceu um canal eficiente de negociação com os grevistas e custou a
admitir que tinha perdido o controle da situação. Quando finalmente
pediu ajuda da Força Nacional de Segurança (FNS), o prédio da Assembleia
Legislativa da Bahia estava ocupado por grevistas, que entraram em
choque com tropas do Exército, FNS e da PF.
A reputação do governador baiano ficou em frangalhos, mas a lição não
surtiu efeito produtivo país afora. O governador pernambucano João Lyra
Neto (PSB) recebeu do antecessor, Eduardo Campos, uma Polícia Militar em
ponto de ebulição. Manteve a política de não negociar com grevistas,
com a greve julgada ilegal. Os policiais ignoraram a decisão judicial, a
cidade mergulhou no caos e quem pagou o pato foi a população. De
quebra, enquanto as lojas de Recife eram saqueadas, a equipe da campanha
publicou na internet uma foto de Campos com a mulher e o filho caçula
viajando em um jatinho – a imagem foi retirada, mas o grito de guerra
contra ele foi inevitável entre os grevistas.
Os policiais voltaram ao serviço nesta sexta-feira. A paz, não. Até que o
policiamento se reorganize, a população está vulnerável, como esteve na
madrugada e na manhã seguintes ao fim da greve, período em que houve
assassinatos, assaltos e saques na Região Metropolitana de Recife. Os
policiais, desgastados, acabaram ficando com o que já estava previamente
negociado com o governo do Estado desde 2011: reajuste de 14,55%
programado para junho, incorporação da gratificação por “risco
operacional” também pelos militares da reserva e promessas de melhorias
nas condições de promoção e de saúde no hospital da PM. “A sociedade
pernambucana não pode pagar o prejuízo”, admitiu, na quinta-feira, um
dos líderes da greve, o soldado Joel do Carmo.
“Há sempre interesses de partidos, de pessoas que aproveitam a liderança
para ganhar projeção. Mas os governadores têm tratado essas greves com
uma lógica de confronto. É o que Pernambuco fez agora. Mesmo em uma
paralisação considerada ilegal, não se pode abrir mão de negociar. É
fundamental criar canais de negociação. O corporativismo tomou conta
desses movimentos. E os governadores pioraram a situação porque não
tiveram capacidade de negociar”, afirma Sapori.
Pernambuco tem um histórico de greves de policiais desastrosamente
conduzidas. Em julho de 1997, uma greve que durou doze dias deixou as
ruas do Recife à mercê da criminalidade. O então governador, Miguel
Arraes, solicitou apoio das Forças Armadas e foram enviados para o
Estado 1.030 homens do Exército, com veículos blindados. No período da
paralisação da polícia, houve setenta assassinatos, catorze postos
policiais foram depredados, seis incendiados. Um soldado morreu com um
tiro na cabeça, quando atuava em um assalto. Quatro anos depois, o
Exército precisou voltar às ruas para socorrer os pernambucanos, no
governo Jarbas Vasconcelos (PSDB). Os oficiais que haviam conduzido a
primeira greve negociavam um adiamento da mobilização. Os praças, no
entanto, cobravam aumento imediato do piso de 500 para 900 reais. Diante
do impasse, os PMs marcharam, armados, até a Praça da República, onde
fica a sede do governo. No dia mais tenso da mobilização, dois grupos de
policiais militares se enfrentaram com tiros.
O pesquisador José Vicente Tavares, professor da UFRGS, dedicou-se a
monitorar greves policiais desde a redemocratização. De tão recorrentes
as demandas, acredita ele, greves desse tipo devem ser encaradas como
uma crise estrutural da segurança pública. “O salário é a ponta do
iceberg. Essas greves usam conjunturas favoráveis, como eleições ou Copa
do Mundo, mas há uma crise institucional nas polícias”, afirma.
A repetição de movimentos grevistas nas forças de segurança favoreceu o
surgimento de uma bancada de policiais nos Legislativos federal,
estadual e municipal. Ao fim, esses movimentos serviram para impulsionar
pretensões eleitorais. Mas, no poder, os sindicalistas-grevistas não
contribuíram para amenizar os problemas que as paralisações de policiais
causam nas ruas. “Greves policiais não são um problema deste ou daquele
governo. Temos que encarar como uma questão social e política. Houve um
incremento na presença de agentes das mais variadas corporações no
Legislativo, mas as paralisações ainda ganham contornos dramáticos”,
afirma Tavares.
Paralisação nacional – Segundo o presidente da Confederação Brasileira
de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), Jânio Gandra, que lidera o
movimento, o protesto de quarta-feira será feito para cobrar “melhorias
na segurança pública”. “A população deve ser compreensiva com o
movimento”, diz Gandra. Não será fácil obter aprovação popular se as
cenas de Pernambuco se repetirem. E é evidente que a mobilização
nacional, e o momento escolhido para a manifestação, tem mais relação
com salários do que com combate ao crime.
No Rio de Janeiro, os policiais civis penduraram em frente à Chefia de
Polícia um grande cartaz lembrando ao governador Luiz Fernando Pezão que
“a decisão é dele”. Os agentes, que reivindicam a incorporação ao
salário de uma gratificação de 850 reais, decidirão em assembleia na
próxima quarta-feira, no Clube Municipal, na Tijuca, se haverá
paralisação em todas as delegacias do Estado. De acordo com o presidente
do Sindicato dos Policiais Civis do Estado do Rio de Janeiro (Sindpol),
Francisco Chao, a incorporação da gratificação vem sendo discutida com o
governo do estado desde o ano passado. Em abril, a categoria
estabeleceu um prazo, que se esgotou na última quinta-feira, para que o
governador Luiz Fernando Pezão apresentasse o projeto de incorporação na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O projeto, no
entanto, não foi levado aos deputados. Segundo o Sindpol, o salário
inicial bruto de um agente é de cerca de 4.500 reais, incluindo a
gratificação Delegacia Legal. Com os descontos, o valor líquido cai para
3.500 reais. O ganho de um delegado no início da carreira, segundo
planilha do Sindpol, é de 15.000 reais.
No Rio a arapuca está armada para Pezão, pré-candidato do PMDB ao
governo: a Polícia Militar está pronta para, em caso de vitória dos
colegas civis, deflagrar imediatamente um movimento reivindicatório. Ou
seja: se Pezão não atender, complica-se com a Civil; se ceder, fica na
mão dos militares.
PEC 300 – Na greve de
2012, como na de agora, a meta nunca alcançada pelos grevistas é a PEC
300 – que, em resumo, equipara os salários dos policiais de todo o país
ao da PM do Distrito Federal, atualmente na casa dos 4.200 reais. Cada
estado, é verdade, tem uma realidade econômica e um orçamento público
próprios, com limitações e tamanhos diferentes. Acontece que, para
surpresa – apenas – de quem não acompanha a novela desde o início, todos
os Estados tiveram, há quatro anos, uma promessa de socorro para
implantar a realidade salarial da capital. Fazer da PEC 300 uma
realidade foi compromisso de campanha de Dilma Rousseff, pois,
justamente pelas diferenças entre os estados, é necessário que a União
complemente os salários nas unidades da federação mais estranguladas.
A PEC deixou de ser prioridade tão logo a presidente subiu a rampa do
Planalto. Agora, quando está mais perto de descê-la do que em qualquer
momento dos últimos quatro anos – como indicam as últimas pesquisas de
intenção de voto – Dilma tem algumas contas a fazer. Uma, aritmética,
diz respeito ao quanto custaria levar à frente a equiparação,
comprometendo mais uma fatia do orçamento da União. A outra, estratégica
e política, leva em consideração os efeitos dos levantes nos estados.
FONTE - VEJA.