Há uma guerra religiosa acontecendo no Brasil. Não é exagero, é uma guerra mesmo. E aconteceu nestes dias uma das suas batalhas mais bizarras: a primeira instância da Justiça Federal no Rio de Janeiro sentenciou que os “cultos afro-brasileiros não constituem religião” porque suas “manifestações religiosas não contêm traços necessários de uma religião”.
Na visão do juiz, uma religião tem que ter um texto base (ele cita a Bíblia e o Alcorão), uma estrutura hierárquica, e de um deus a ser venerado. Foi o Ministério Público Federal que provocou essa manifestação inesperada, ao apresentar uma ação em que pedia a retirada do Youtube de vídeos de cultos evangélicos que o MPF considerou intolerantes e discriminatórios contra as práticas religiosas de origem africana.
E foi para negar ao pedido de retirada que o tal juiz decidiu que umbanda e o candomblé são não-religiões.
O MPF já recorreu, e é impossível que a decisão não seja revertida, por ser inconstitucional. Mas a sentença desse juiz é exemplar. Exemplar não no sentido de correta, mas de expor o centro, o coração da discussão, ao mencionar “deus único”, escritos religiosos e hierarquia constituída como “requisitos”.
Na verdade, se voltarmos à espiritualidade ancestral, veremos exatamente o contrário, ou quase. Mesmo onde há hierarquia (local) empossada em algum tipo de xamã, sacerdote ou pajé, ele é apenas um emissário ou facilitador entre o sagrado e a experiência espiritual individual.
E não o representante de algum monopólio metafísico-negocial, proprietário e gestor da distribuição do produto invisível que é a palavra divina. Os sistemas politeístas, ou que lidam com panteões de entidades intermediárias, como no caso os orixás da tradição africana, são uma descrição mais útil, sutil, variada e interessante da diversidade dos comportamentos humanos.
E em geral menos perigosos politicamente do que os sistemas onde há uma “moral única” que emana de uma fonte divina exterior à experiência dos indivíduos – moral que em geral serve para legitimar os interesses e preconceitos de seus “intérpretes” oficiais, sua hierarquia constituída.
Ao contrário, as religiões que se baseiam na transmissão oral da tradição são temperadas pela experiência viva, justa, dinâmica e amorosa. O griô da tradição africana é um sábio-andarilho, um sábio-da-rua, da vila, um misto de poeta, músico, árbitro e depositário e intérprete da tradição, não um leitor de gabinete, um bedel da palavra, um burocrata do espírito (como se isso não fosse um paradoxo e um impasse).
Essas tradições também costumam ter uma visão mais equilibrada da relação do homem com a natureza, já que o mundo não é um “brinquedo” que deus deu aos seus filhos para usarmos até gastar ou quebrar. Mas um campo de experiências éticas e estéticas no limiar do visível e do invisível, da natureza e do idealizado, do feminino e do masculino. Um mundo horizontal, e não vertical, como essas alucinações brancas monoteístas e repressivas pretendem.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jaime Mitropoulos, autor da ação inicial, comenta nesse mesmo sentido. “A decisão causa perplexidade, pois ao invés de conceder a tutela jurisdicional pretendida, optou-se pela definição do que seria religião, negando os diversos diplomas internacionais que tratam da matéria (Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, Pacto de São José da Costa Rica, etc.), a Constituição Federal, bem como a Lei 12.288/10. Além disso, o ato nega a história e os fatos sociais acerca da existência das religiões e das perseguições que elas sofreram ao longo da história, desconsiderando por completo a noção de que as religiões de matizes africanas estão ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto básico para defini-las”, disse ele.
É por isso que não me espanta um “juiz”, na pior tradição branca, falar em livro, hierarquia e deus únicos. Esse juiz representa o invasor, o capitão do mato, o neto do dono da capitania hereditária. Eu gosto de dizer que os brancos invadiram a terra dos índios e a encheram de pretos, e agora reclamam que o resultado não está suficientemente branco.
Não está, e não é pra estar, e jamais vai estar. A guerra religiosa não se dá “no” Brasil. Ela se dá contra o Brasil, pois o Brasil só existe como esse laboratório onde as tradições se equivalem e se misturam – e não num delírio nazi de pureza e limpeza européias.
O título “O Brasil é macumbeiro” é uma provocação. Mas quer contemplar três fatos: primeiro, o de que o país, mesmo quando era “a maior nação católica do mundo” (assim dizia a igreja até recentemente, até começar a perder a parada para os neopentecostais), também já era a maior nação espírita e a maior nação de religiões das tradições africanas. Segundo, de que o termo “macumbeiro”, pejorativo, tem que ser hackeado e invertido, como o foram outros termos pejorativos – a trinca punk, funk e junk é um bom exemplo.
E terceiro, e o mais irônico, é que a experiência neopentecostal é um macumbão dos bons, com rituais simpáticos (feitiçariazinhas envolvendo líquidos, escritas, objetos energizados etc), sessões de transe e possessão (como o “falar em línguas”), e todo um jargão não-cristão consolidado, como o uso do termo e da idéia de “encostos”.
Ou seja, um macumbão em nome de quem o nega. Se essa pegadinha é deus quem manda, esse deus é meu inimigo, e não meu pai.