Por muito pouco, uma brincadeira de mau gosto não mata um estudante de Direito de 19 anos, em Santos. Vítima de um mata leão, golpe de estrangulamento usado nas artes marciais, Guilherme Doretto do Vale Gonzalez sofreu hipóxia (falta de oxigênio no cérebro), que o deixou numa cadeira de rodas até recuperar as condições para voltar a ser independente.
Logo após a imobilização, Guilherme teve três convulsões e poderia ter sofrido uma parada cardíaca
A insuficiência respiratória afetou o cerebelo, área responsável pelo equilíbrio e a postura corporal. Hoje, a lesão ainda o impede de permanecer em pé, embora consiga movimentar os membros inferiores e superiores.
Em sua residência, no Embaré, a família do rapaz concedeu entrevista a A Tribuna para alertar os jovens e os pais sobre uma brincadeira aparentemente inofensiva, mas que pode provocar sérios danos.
O caso ocorreu no início da madrugada do dia 26 de dezembro, no jardim ao lado do Posto 2, na orla. A vítima estava com cerca de 20 jovens, a maioria na faixa dos 20 anos, que combinaram “brincar de luta”. A ideia era que os chutes e socos fossem dados na sombra, ou seja, sem atingir o oponente. Sem esperar, porém, Guilherme, que é praticante de taekwondo, foi golpeado violentamente por um rapaz, conhecido dele.
Apesar do sinal do jovem, indicando que já havia baixado a guarda, o outro continuou o estrangulamento. Rapidamente, a turma percebeu que a vítima estava com problemas e interrompeu a brincadeira.
Convulsão
Sem força nas pernas e agachado, o estudante tentou engatinhar e desmaiou. Assustado, o grupo não quis esperar a chegada do resgate e levou a vítima ao hospital. No trajeto até a Santa Casa de Santos, ele sofreu a primeira convulsão.
Quando deu entrada no hospital, Guilherme apresentava 240 batimentos cardíacos por minuto. Para um adulto, um ritmo cardíaco normal varia entre 60 e 100 batimentos por minuto. Se os amigos não tivessem prestado socorro rápido, o desfecho poderia ter sido pior, diz a mãe, Karina Doretto do Vale Gonzalez.
O jovem sofreu uma nova convulsão, e a equipe médica decidiu sedá-lo e entubá-lo. Sem vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e com o aparelho de tomografia indisponível, a família o transferiu à Beneficência Portuguesa, onde teve a terceira convulsão e foi posto em coma induzido. Foram dois dias na UTI e dez no quarto, antes de receber alta.
Recuperação
Em nova fase do tratamento, Guilherme passará por sessões de fisioterapia em casa, no convênio médico e no Centro de Reabilitação Lucy Montoro, em Santos.
Embora seja um caso reversível, não há prazo de quando o filho terá novamente uma vida normal.
Guilherme quer "andar e correr"
Guilherme quer "andar e correr"
Do trabalho de atendente em uma escola, ficará afastado por tempo indeterminado. Porém, no curso de Direito, a ideia é voltar às aulas.
O pai, Roberto Vieira Gonzalez, entende que a socialização será importante na recuperação do filho.
“Não sei como será a adaptação, mas estou disposto a levá-lo à faculdade e, se for o caso, fazer as anotações no caderno durante as aulas. Ele está com a mobilidade prejudicada, mas sua inteligência está preservada”, diz.
Entre os planos para quando recuperar totalmente a saúde e ter condições de praticar uma atividade física, Guilherme já sabe o que fará. “Quero andar e correr na praia”.
Serenidade
Os pais de Guilherme dizem que não têm ódio ou raiva do agressor, porém não querem estabelecer qualquer tipo de contato. O rapaz tentou pedir desculpas à família. Caso ela tivesse levado o caso à polícia, ele poderia responder por lesão corporal.
“Isso não me importa agora. Só penso na recuperação do meu filho. Não tiro a responsabilidade de Guilherme em estar no local quando aconteceu essa barbaridade; não cabe jogar a culpa apenas naquela pessoa”, afirma.
Lição
Roberto diz que fica a lição de que essas brincadeiras não podem ser praticadas.
“Os jovens precisam ter essa consciência. Há lugares específicos para esse tipo de luta, e ela precisa ser acompanhada por gente que tem mais conhecimento para evitar problemas”, adverte.
Jogo pode levar a lesão definitiva
Interromper a respiração, com o objetivo de induzir temporariamente a um desmaio, euforia ou vertigem. A brincadeira, muito perigosa, conhecida como jogo do desmaio, pode provocar a perda da consciência. O jogo é feito com estrangulamento ou pressão no peito. O efeito? O sério risco de prejudicar a distribuição de oxigênio no cérebro.
O chefe da equipe de neurocirurgia do Hospital Ana Costa e membro titular da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, Antonio Carlos Grela Santos, explica que o cérebro possui uma demanda bastante elevada de sangue e de oxigênio.
“Pode-se compreender isso por uma relação entre o fluxo sanguíneo cerebral por grama de cérebro. A atividade cerebral complexa, reflexões e cálculo exigem um fluxo de 65 ml por grama de tecido cerebral por minuto. Abaixo de 30 ml por grama de tecido cerebral por minuto, ocorre uma redução da consciência”.
Lesão cerebral
Segundo o especialista, valores abaixo de 20 ml por grama de tecido cerebral por minuto levam à inconsciência; e quando o volume é inferior a 5 ml por grama de tecido cerebral por minuto, ocorre a morte do neurônio.
A consequência é a lesão do neurônio do cérebro em diferentes graus, de lesão transitória com potencial de recuperação, até lesões definitivas, que levarão a sequelas, cognitivas e ou motoras, e morte na dependência da duração do evento.
De acordo com o neurocirurgião, o dano cerebral, quando instalado, provoca a sequela em grau variável, conforme extensão da lesão e a duração da privação da circulação e, por consequência, da privação do oxigênio.
“Todo doente que sofre uma hipóxia deve receber atenção especializada, pelo potencial de agravamento e morte. Sequelas motoras ocorrerão em casos extremos; enquanto sequelas cognitivas podem ocorrer em graus variados, necessitando, por vezes, avaliações neuropsicológicas bastante elaboradas para a determinação”.