Ex-presidente fala à Comissão Nacional da Verdade sobre a
prisão, perseguição e monitoramento sofridos durante a ditadura militar
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu a Comissão Nacional
da Verdade, em São Paulo, para dar seu depoimento sobre a perseguição e
repressão sofridas no período da ditadura militar no Brasil. Durante
cerca
de uma hora e meia, Lula contou aos membros da CNV, Maria Rita Kehl e
Paulo Sérgio Pinheiro, como foi lutar por melhores condições de trabalho
nos anos 1970 e 1980, e deu detalhes sobre os 31 dias que passou na
cadeia, sua relação com os militares, com o então delegado Romeu Tuma,
investigadores e carcereiros.
Veja edição do depoimento de Lula à CNV
O Frei Chico costumava me convidar, já em 1973, 1974, para algumas
reuniões clandestinas, de noite, no apartamento não sei de quem. Eu
falava: Eu não vou porque se o cara quiser conversar comigo é melhor ir
lá no sindicato. Eu dizia para o Frei Chico assim: O que você faz
escondido, eu faço na porta da Volkswagen. Eu lembro do Ratinho, que ia
para porta da fábrica, e dizia: Nós vamos ter que lutar porque a
ditadura só vai acabar quando o sangue estiver batendo nas nossas
canelas. Para um cara organizado isso era uma coisa horrorosa, mas para
um peão de fábrica isso não quer dizer nada.
Lula continuou no seu caminho e quanto mais força o sindicalismo
tinha, mais divergente ficava da militância política. Apesar da
diferença, segundo o ex-presidente, o fortalecimento da luta pela
democracia foi aprendido por meio do embate. O ex-presidente explica
que, após 1968, a indústria automobilística começou a colocar em prática
uma política de arrocho salarial. Os aumentos na folha de pagamento
foram ficando, no início da década de 1970, cada vez menos frequentes,
criando assim um clima de animosidade. Já os sindicalistas, a partir de
1972, começaram a inovar nas suas reivindicações e em 1977 fizeram uma
campanha para obter 34,1% de reposição salarial que fortaleceu a
categoria. A partir daí os trabalhadores intensificaram o movimento de
greve.
Havia todo um movimento na sociedade, quando os trabalhadores
resolveram acordar de vez. E por que aconteceu na Scania? Porque era uma
empresa muito organizada, onde os trabalhadores tinham um salário
razoável e começaram sentir perda salarial. No dia que eles receberam o
pagamento, que não veio o reajuste que eles imaginavam, eles pararam. E
isso foi como se acendesse um pavio. Naquele ano de 1978, nós fizemos
greve o ano inteiro em fábricas diferenciadas, cada uma de um jeito, da
forma que os trabalhadores se organizavam e fomos descobrindo a ligação
das nossas reivindicações com a luta pela democracia. Nós conseguimos
exteriorizar um sentimento que já estava na sociedade brasileira, era um
momento tão importante para o Brasil que ninguém mais queria ser
chamado de médico ou professor, era tudo trabalhador, disse.
MONITORAMENTO - Em setembro deste ano a Comissão
Nacional da Verdade apresentou, em São Paulo, documentos que indicavam o
monitoramento e espionagem de trabalhadores, por parte de empresas
brasileiras e estrangeiras.
Um dos documentos mostra claramente que o ex-presidente da República
Luis Inácio Lula da Silva foi monitorado pela Volkswagen. O relato traz
detalhes de como foi a assembleia dos mutuários de São Bernardo do
Campo, no ABC paulista, realizada em 19 de junho de 1983. No documento,
constam dados como horário de início e de término, local, quantidade de
pessoas presentes, nome completo e função dos oradores e até mesmo o que
foi dito na assembleia.
Segundo o relatório, os mutuários eram contra o aumento de 130% na
prestação da casa própria e Lula afirmava que a única maneira dos
mutuários acabarem com “essa pouca vergonha do governo” era não pagar
mais as prestações do Banco Nacional da Habitação (BNH).
Eles me vigiavam em cinema. Na assembleia, a gente notava que eles
estavam lá. Às vezes, disfarçados no bar do sindicato. Na minha casa,
por exemplo, eles paravam a perua na porta e passavam a noite. Às vezes,
para encher o saco, a Marisa (Letícia, esposa de Lula) mandava fazer
café e mandava levar para eles. Foram uns três ou quatros anos que eles
monitoraram e me acompanharam antes da prisão, brincou.
PRISÃO - Em 1979, Lula encerrou uma greve longa e
que causou a intervenção no sindicato, aceitando uma proposta, que, na
avaliação dele era interessante. Lula conta que os trabalhadores não
concordavam em voltar ao trabalho, mas diante de sua liderança,
resolveram dar um voto de confiança para que Lula continuasse negociando
e, mesmo contrariados, voltaram à atividade na fábrica.
Já no ano seguinte, 1980, os trabalhadores fizeram uma nova greve e,
de acordo com o ex-presidente, com dezessete dias de greve: Os
militares cometeram a burrice de me prender, porque não tinha mais como
continuar a greve. Segundo Lula, quando os empresários paravam de
negociar e os sindicalistas não tinham mais notícias para passar aos
grevistas, ninguém aguentava continuar na greve e este era o cenário
daquele ano.
O que aconteceu quando eles me prenderam? Foi uma motivação a mais
para a greve continuar, as mulheres fizeram uma passeata muito bonita em
São Bernardo do Campo, depois foi aquele primeiro de maio histórico, em
que foi o Vinícius de Moraes, e a greve durou mais quase 30 dias.
A prisão do ex-presidente e de outros sindicalistas aconteceu no
mesmo dia da prisão de Dalmo Dallari, pai do coordenador da CNV, Pedro
Dallari, e no mesmo dia do membro da Comissão da Nacional da Verdade,
José Carlos Dias. No caminho para o Dops, Departamento de Ordem Política
e Social, onde ficou preso, Lula teve medo de ser assassinado, mas a
apreensão acabou quando ouviu no rádio do carro que o levava à
delegacia, a notícia da sua prisão, que rapidamente havia sido
comunicada pelo Frei Beto à imprensa.
Dentro da cadeia, segundo Lula, o tratamento não foi ruim. Ele conta
que foi recebido por Romeu Tuma, na época diretor-geral do Dops, com
dignidade, e foi inclusive, durante os 31 dias que ficou preso, liberado
para ver a mãe que estava com câncer.
Quando nós fomos presos, uma coisa que o Tuma ficava indignado era
quando ele interrogava um cara que tinha uma formação ideológica de
algum grupo político. O Tuma dizia: Esse pessoal, quando interrogado,
tem toda uma história certinha para contar, parece que estudou e decorou
um ritual. Os metalúrgicos não, a gente falava a única coisa que a
gente sabia, ou seja, por que a gente fez greve? Porque a gente queria
aumento de salário. E o que deixava o Tuma indignado, era que o discurso
era um só, a explicação nossa era uma só, não tinham duas explicações.
Na cadeia, Lula fez greve de fome
de seis dias e manteve, mesmo dentro da prisão, a atuação sindical.
Segundo o ex-presidente, os investigadores foram aconselhados por ele a
lutar por um salário mais digno, em uma assembleia feita dentro do Dops.
Lula ainda convivia bem como o carcereiro conhecido como Picadão, que
anos depois entrou para o PT, e conseguiu, com o próprio Tuma, uma TV
para assistir à partida de futebol entre Corinthians e Botafogo. A
gente foi tratado lá com um certo respeito porque tinha muita gente do
lado de fora, não era um preso comum, tinha trabalhador, estudante,
intelectuais, igreja, todo mundo, finalizou.
https://br.noticias.yahoo.com/blogs/claudio-tognolli/os-militares-cometeram-a-burrice-de-me-prender-152643675.html