Rio - Estudante de História, Laura Mineiro ficou chocada
com o que testemunhou ontem, em Botafogo. Um vizinho, garoto negro de
oito anos, se distraía, como de costume, com cães que estavam na praça
da Rua Lauro Muller.
Um menino, branco, pediu à mãe para brincar. Ela negou:
disse que eles poderiam ser assaltados por um mendigo que estava por lá.
Ao falar com a mulher, Laura viu que ela se referia ao garoto negro. “É
menino de rua, só ‘tá’ esperando alguém ficar sozinho pra dar o bote!”.
Rapazes discutiram com segurança, ameaçaram sair nus pelo campus e o chamaram de 'macaco'
Rio - Um aluno da Universidade Estácio de Sá do Norte
Shopping, no bairro Cachambi, na Zona Norte e um amigo, foram presos na
na manhã desta sexta-feira por atos racistas após xingarem um segurança
da unidade de ‘macaco’, depois de serem flagrados fazendo sexo em uma
sala de aula. Eles foram autuados por injúria racial e ato obsceno na 25
ª DP (Engenho Novo).
De acordo com policiais do 3º BPM (Méier), que efetuaram a
prisão, os jovens de 20 e 21 anos, foram flagrados por outros dois
alunos transando na sala. Um segurança foi acionado e pediu que a dupla
colocasse a roupa. Eles se negaram e tentaram sair nus pelo campus.
Um deles que é aluno de Administração e outro que estaria
matriculado para começar o curso de Psicologia em janeiro, segundo PMs,
foram impedidos pelo segurança, que acabou xingado de ‘macaco’ e outros
insultos. A Universidade Estácio de Sá afirma que somente o rapaz que
cursa administração possui vínculos com a instituição.
"Quando entrei, vi os dois completamente nus e transando.
Eles estavam transtornados. Me chamaram de corno e macaco. É um absurdo
aluno de uma faculdade com pensamento racista. Não perdoo os dois",
afirmou ainda constrangido, o segurança Ricardo de Lima, de 29 anos.
Thiago Beldon de Araújo - aluno de Administração - e
Leandro Ferreira Coelho da Silva, tentaram quebrar tudo que viam pela
frente, como lixeiras e cadeiras.
A polícia foi chamada e prendeu os dois jovens. Com eles,
foi encontrada uma garrafa vazia de vodca. De acordo com a polícia,
eles passaram a madrugada em uma festa e entraram na sala de aula ainda
vazia pela manhã.
“Um aluno filmou o ato e entregou à delegada. Estavam
muito alterados e confessaram que beberam muito numa festa. Não
demonstravam vergonha. Nunca fiz uma ocorrência tão inusitada como esta
em cinco anos na Polícia Militar”, lembrou o soldado do batalhão do
Méier, Diorge Souza. Por meio de nota, a direção da Estácio de Sá se
manifestou: "A instituição acompanha o desenrolar do episódio junto às
autoridades policiais e reafirma seu compromisso com a segurança e o
bem-estar dos alunos dentro de suas dependências”, diz o comunicado.
Policiais que se consideram tratados como escravos ou
prisioneiros, trabalhando sob constante pressão e a base de calmantes. É
esse o cenário a que muitos PMs estão submetidos em seu dia a dia e que
aparece retratado na tese de doutorado da socióloga e pesquisadora do
Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo)
Viviane de Oliveira Cubas.
Para o trabalho, apresentado na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH), ela entrevistou 15 policiais e
analisou as queixas registradas na Ouvidoria da Polícia do Estado de São
Paulo entre 2006 e 2011. Neste período, foram 1.716 denúncias feitas
somente por policiais, sendo que 95,7% do total são reclamações de
integrantes da Polícia Militar e apenas 4,1% da Polícia Civil.
A explicação para a diferença no número de queixas de
seus integrantes pode estar no fato de uma corporação ser militarizada, e
a outra não. “Os números mostram o quanto essa estrutura acaba
propiciando relações bastante tensas entre os policiais”, explica
Viviane.
O resultado da análise comprova o problema de
tratamento que existe entre subordinados e chefes na Polícia Militar.
Cerca de 80% das queixas tratam de “problemas nas relações de trabalho” e
quase metade (39,5%) se refere apenas a assédio moral ou escalas de
trabalho.
Nas denúncias de abuso, por exemplo, a maior parte é
contra oficiais superiores hierarquicamente. “O que dá pra dizer é que
todo superior, a partir do momento que tem um pouco mais de poder, abre
brecha para exercer força sobre subordinados”, argumenta.
Os abusos
Dentre as queixas as quais a socióloga teve acesso, há
uma, por exemplo, que relata as metas para prisões em flagrante
estabelecidas por um comandante que, quando não cumpridas, resultavam na
transferência de policiais ou em banhos com água fria e fardados. A
denúncia informa ainda que quatro policiais contraíram pneumonia por
conta do castigo. Em outra, um oficial relata que, como forma de
punição, um major teria obrigado os policiais a pular em uma lagoa com
barro e excrementos de animais
Sobre as escalas, as reclamações normalmente são de
sobrecarga nos horários de trabalho. Por várias vezes, os policiais
enfatizam cansaço físico e mental após várias horas ininterruptas em
serviço, o que aumenta as possibilidades de erros ou agressividade
contra cidadãos.
Há denúncias em que policiais alertam para a
possibilidade de colegas serem violentos com seus superiores. Em dois
casos extremos, um policial teria disparado um tiro dentro de uma base
da Polícia, devido ao excesso de trabalho, e, em outro, oficiais teriam
presenciado um colega apontar a arma para a própria cabeça.
Muitas vezes, o estresse é provocado pelos próprios
superiores. A pesquisadora cita uma denúncia na qual um major e um
capitão tinham escalado a tropa para trabalhar na segurança das estações
do metrô, entre 9h e 22h, sem meios de comunicação, sem autorização
para almoçar, beber água ou ir ao banheiro, além de terem colocado um
oficial para vigiar, com a possibilidade de puni-los caso desobedecessem
às ordens.
Questões emocionais
Na fase em que entrevistou policiais, a pesquisadora
abordou a questão dos desvios de conduta, como uso excessivo da força e
corrupção. Apesar de os PMs condenarem veemente este tipo de
comportamento, a maioria dos que aceitaram participar do estudo viu
problemas emocionais - não de caráter ou treinamento.
“Eles entendem que neste tipo de situação o policial saiu
do seu controle por questões emocionais. Isso foi um pouco surpresa
para mim. Achei que eles tivessem outra percepção disso. Qual a
estrutura que os policias recebem para manter o controle emocional? Isso
não aparece na fala dos PMs. Parece que a instituição cumpre seu papel.
Acho que eles não se dão conta disso”, opina Viviane.
A pesquisa não abordou como os abusos, a carga de
trabalho e a infraestrutura influenciam na conduta do PMs durante o
policiamento ostensivo, mas, na opinião da acadêmica, os números e os
depoimentos podem ser sinais disso. “Isso é uma coisa que surgiu e que
tenho vontade de estudar. O quanto esse modelo de tratamento, muitas
vezes desumano, desigual e autoritário vai refletir do batalhão para
fora? Se internamente eles trabalham numa ótica em que não são iguais,
sempre alguém vai estar acima de alguém, como isso vai refletir depois
na rua para a garantia de direitos de igualdade? Como desse jeito eles
toleram quem questiona a atitude deles? Não é uma coisa que explorei,
não estou afirmando, mas é muito provável que isso vá para fora dos
batalhões”, conclui.