Enfrentar o tema “Polícia”, para cingir-se ao óbvio, é uma tarefa
espinhosa, mercê de nuances ideológicas, convicções e antíteses
reverberadas no bojo de uma dialética inserta, não raro, no próprio seio
policial.
Contudo, essa dificuldade é revelada para qualquer pessoa que se
lance a sondar o intrincado espectro que envolve “Polícia” e,
particularmente, por ser um policial, o esforço em ser o mais isento
possível, pode iluminar ou eclipsar o trabalho.
Aspecto inarredável que deve ser considerado, já que se visa à
realidade brasileira, são os períodos ditatoriais, sobretudo o golpe
militar de 1964, que nos assombraram e cujos efeitos se protraíram no
tempo e se manifestam, não como fantasmas, mas como entes vivos e
poderosos.
De outro lado, o próprio conceito de “Polícia” é controvertido, o que
no Brasil fica mais evidente, uma vez que existem duas “Polícias”
atuando teoricamente sob a batuta de uma mesma finalidade.
Giza-se, por evidente, que a referência a duas Polícias prende-se ao
contexto das vinte e seis Unidades da Federação mais o Distrito Federal,
pois conforme o art. 144 da Constituição Federal existem outros
organismos policiais, sendo que em nível federal são três Polícias
(Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Policia Ferroviária
Federal), o que, sobremaneira, também contribui para o fracasso do
modelo policial no Brasil.
Para ilustrar o quanto é inapropriada, caótica e solapável a
estrutura policial no Brasil, basta citar as guardas municipais, com
previsão constitucional de estritamente salvaguardarem o patrimônio dos
municípios, mas sem deterem poder de polícia, na prática agem como as
polícias militares, mas é óbvio que ninguém vai se insurgir contra a
usurpação de atribuições, já que de alguma forma contribuem para o
combate à criminalidade.
A atuação torta dos governos no combate à criminalidade não vem
surtindo efeito e os índices de violência só aumentam, por conta, além
de fatores sociais, como por exemplo, as minguadas políticas públicas
sérias, a ainda capenga distribuição de renda, o modelo antiquado e
incompatível das Polícias como mecanismos do monopólio legítimo de força
(para obediência às leis) do Estado, fazendo surgir outro componente
preocupante, o extraordinário aumento da segurança privada, convertendo a
segurança pública em fonte do capitalismo.
Retomando às duas Polícias estaduais, a realidade indica que há uma
fissura desde a gênese do aparelho coercitivo do Estado brasileiro, e
uma eventual unificação das polícias não vai acontecer da forma como se
propõe, seja pelo forte corporativismo das Instituições envolvidas, ou
por outros motivos que não cabem tratar aqui.
Ademais, nem sempre há garantias de que uma Polícia única seja
eficiente, eficaz e efetiva só pelo fato de ser unitária, podendo
constituir-se sim em um risco de servir a interesses
político-partidários, se acaso não projetada e erigida em uma democracia
consolidada.
Independente do número de instituições policiais, elas não podem
estar tão compartimentadas a ponto de rechaçarem a interação e a troca
de informações. De qualquer forma, não devem ter ranço militar, e mais
grave, se o tiverem, concomitantemente se arvorarem em arautos da
democracia e da cidadania.
Aludida unificação é uma balela que não resiste a um aprofundamento
teórico, pois não tem como se colocar remendo novo em tecido velho e
esgarçado, é necessário tear uma nova peça desenhada sobre um molde novo
e moderno, que tenha caimento num corpo social que exige um padrão
compatível com seu grau desenvolvimento.
A infeliz dualidade da Polícia no Brasil foi criada no auge do
período ditatorial, mecanismo de defesa do Estado de exceção, tendo como
mote a propalada segurança nacional.
Ocorre que a ideologia adotada é a mesma presente em todos os
exércitos do mundo, ou seja, combater inimigos. Aliás, ideologia
conveniente do sistema da época, pois quem não estava a favor do regime,
estava contra, era inimigo.
Contudo, o Poder Constituinte que fundou o novo Estado brasileiro,
embora tenha concebido uma Constituição privilegiando os direitos
fundamentais, e instituidora da democracia e de todos os seus
consectários, como a cidadania, que é uma das suas faces, manteve o
retrógrado modelo de Polícia, dissonante de toda a proposta de
redemocratização.
Destarte, não se trata de unificar, mas extinguir a Polícia
incompatível e estruturar a Polícia compatível. Unificar é impropriedade
porque as Polícias Civil e Militar não se complementam, ao contrário,
são antagônicas.
Etimologicamente, Policia Civil encerra um pleonasmo e Polícia
Militar uma antítese. Há que se ponderar, no entanto, que nem todo
pleonasmo é vicioso, e neste caso, o adjetivo só reforça que Polícia do
povo jamais poderá ter cunho militar, pelo menos não em um Estado dito
democrático.
No Brasil parcela das atribuições de polícia está nas mãos da chamada
Polícia Militar, o que se traduz numa incoerência e revela ressaibo dos
períodos de regimes autoritários vivenciados em nosso país.
O cenário que se apresenta no tocante às polícias torna falacioso
medidas como polícia comunitária, unidades de polícia pacificadora etc.
Há um vício insuperável na origem, é como querer edificar um segundo
piso sobre alicerces frágeis, ou seja, uma ora vai ruir e tudo virá
abaixo.
Cidadania é uma expressão umbilicalmente ligada à democracia, o que
torna inconciliável uma instituição total trazer em sua doutrina
argumentos que ressaltem princípios que lhes são avessos por sua própria
ontologia.
É sintomático que os Estados continuem se militarizando, o que
facilita lançar mão da coerção tão logo seja necessário para debelar
possíveis manifestações que afrontem o governo.
O primeiro passo para transformar a Polícia do Estado em Polícia do cidadão é desmilitarizando a Polícia.
No Brasil, no entanto, não é o que ocorre, sendo que a Polícia Civil
recebe os menores investimentos, desde a falta de policiais até de
estrutura material propriamente dita.
Há um mal disfarçado interesse em manter as coisas como estão, já que
a Polícia Civil é a única capaz de investigar e promover possibilidades
para que a Justiça atue para responsabilizar os detentores de poder que
procedem mal.
Sem perceber tem-se arado e adubado campo que torna cada vez mais
fértil a militarização da Polícia, ao invés de sobrevir exatamente o
contrário, o que torna a Polícia cada vez mais do Estado, e não do
cidadão.
2. POLÍCIA: CONTRAPONTO IDEOLÓGICO
Não como forma de confrontá-las, senão com a intenção de emprestar
colorido a este projeto, que embora não possua maior envergadura
científica e se limite mesmo a se postar no raso, mas colima extrair
importantes premissas idôneas a uma reflexão de maior fôlego, neste
tópico lança-se mão das seguintes obras: “Introdução à Filosofia de
Marx”, de Sérgio Lessa e Ivo Tonet e da “Política Social: temas e
questões”, de Potyara A. P. Pereira.
No esteio da concepção marxiana, a Polícia é um mecanismo do mundo
capitalista, já que a própria existência do Estado e do Direito seriam
meros subterfúgios que serviriam de pilares para a manutenção da classe
dominante, isto é, a burguesia.
A própria democracia e tida como uma sutil forma de se criar uma
ilusão de que todos são iguais, e que todo o poder emana do povo, mas ao
contrário, oculta nessas premissas estaria a indeclinável dominação de
uma classe sobre a outra.
A sutileza é que se propugna uma igualdade perante a lei, que é
apenas formal, mas a igualdade material, embora haja o compromisso de
buscá-la, ante as inerentes contradições do capitalismo, nunca será
atingida.
Historicamente os Estados só passaram a existir depois que o homem
passou a estocar o excedente de produção e começou a comercializá-lo,
abandonando desta forma, a produção para a própria subsistência
É óbvio que, nesse passo, fundamental a existência da propriedade
privada, e para protegê-la premente a criação de um aparelho de
proteção, sendo que os proprietários se cotizavam por meio de um
tributo, a título de remunerar esse exército, ou seja, um aparato de
homens com funções precípuas de defesa da propriedade.
Marx enxergava o Estado com uma função eminentemente coativa, de
força, criado com finalidade de manutenção do poder, e nesse diapasão, o
Exército ou a Polícia seriam a expressão personificada dessa
coercitividade.
Um dos maiores estudiosos de Marx, Gramsci, embora filiado às suas
teorias, difere o entendimento no tocante a essa noção de Estado.
Gramsci estatuiu uma concepção de Estado ampliado.
No Estado ampliado não haveria apenas a face coercitiva do Estado,
fundado na burocracia e nos aparatos de repressão, mas também outra
face, representada pela sociedade civil, ou os grupos que formavam a
hegemonia, ou a direção do poder, e essas duas metades formariam o que
Gramsci cunhou de Estado ampliado.
Ora, tanto no Estado restrito de Marx, ou no ampliado de Gramsci,
observa-se que as forças de dissuasão, inserta aí a Polícia, estariam
sob o comando dos detentores de poder, empregadas para se manter nele,
isto é, Polícia do Estado, e aqui tanto faz falar-se em ditadura ou
democracia, já que, no capitalismo, segundo os pensadores críticos de
aludido sistema, depende das conveniências de momento.
Enfim, no capitalismo, a Polícia, mesmo em uma democracia é um
mecanismo manejado e manipulado, mas aí, não é apanágio só da Polícia,
pois o Poder Judiciário também serve à classe burguesa, assim como, já
comentado, o próprio Direito ou qualquer órgão ou instituição, pois em
última análise, pela ideologia de Marx, no estágio culminante de
desenvolvimento social, há a total desnecessidade do Estado.
Todavia, em que pese o brilhantismo de Marx e sua contribuição sempre
contemporânea na denúncia às distorções e injustiças provocadas por um
capitalismo cada vez mais exacerbado, impiedoso e insensível, a ideia
aqui não é fazer loas às concepções de esquerda, nem refutá-las, mas sim
tentar coadunar algumas das análises como esteio útil ao entendimento
da aberração que é o modelo de Polícia no Brasil.
Assim como a Política Social, que é complexa, contraditória, mas é
estudada dentro do capitalismo, constituindo-se muitas vezes em fonte de
cidadania, a Polícia também tem essa feição, já que impossível
vislumbrar uma sociedade sem Polícia, devido à própria natureza humana
passional, mesquinha, egoísta, ambiciosa, e com toda a sorte de
sentimentos imprevisíveis.
Vivemos sob a égide do capitalismo, e enquanto a humanidade não
evolui em um grau de perfeição tal que se faça dispensável a presença do
Estado, dentro de um modelo de Estado posto, o Democrático de Direito,
que garante e encerra como um dos pilares fundantes do Estado, a
cidadania, temos o direito garantido de termos uma Polícia isenta,
pronta, preparada, moderna e que promova de fato a cidadania, não uma
que só propale ser do povo.
3. POLÍCIA MILITARIZADA NO BRASIL: PRIMAZIA NA DEFESA DO ESTADO
A origem da Polícia no Brasil está atrelada às demandas políticas e
ao próprio modelo de federação por desagregação ou centrífuga, em que
primeiro se fundou a federação para só depois emergirem os
Estados-membros.
Pequenos exércitos foram criados nos Estados-membros, com finalidade
de contrastar o poder central, o qual tinha com mecanismo de coerção o
Exército e a Marinha. Surgiram assim, nos Estados, as denominadas Forças
Públicas ou Brigadas.
Nesse tanto, há que se remeter às concepções de análise crítica ao
capitalismo, pois assim como o Exército e a Marinha em nível federal
resguardavam os interesses dos detentores do poder, à época grupos
oligárquicos, em âmbito estadual esses pequenos exércitos defendiam as
mesmas oligarquias, mas em âmbito regionalizado.
O contingente da Força Pública em São Paulo ultrapassava o do
Exército, traspassando-o inclusive em estrutura material e bélica a do
Exército, fato muito bem utilizado nos anos de 1924 e 1932 quando o
Estado paulista confrontou o poder central.
Pode-se considerar que o poderio da Força Pública foi justamente em
1932 com a vitória do governo central, tendo em vista a compleição de um
Estado unitário com características totalitárias, que foi cunhado de
“Estado novo”, no qual, obviamente diluiu qualquer autonomia dos
Estados.
A Força Pública, agora debilitada, como consectário do
enfraquecimento dos próprios Estados-membros, perdeu espaço para o
Exército, diminuindo paulatinamente seu poderio, tanto de efetivo quanto
de estrutura, por imposição do poder central que não tolerava mais ser
arrostado.
A Força Pública ainda se mostrava útil para a contenção popular, mas
ante a perda de muitas de suas funções, foi à cata de outras que já
estavam destinadas à Polícia Civil, que à época se dividia em guarda
civil, uniformizada, e a polícia civil estrita no tocante às
investigações criminais.
Diante desse impasse, tendo em vista o problema existencial da Força
Pública, encetaram-se discussões para analisar e delimitar as funções da
polícia miliciana, o que era premente, pois era um número relevante de
pessoas que integravam o orçamento público, mas vagava sem funções
definidas.
Como sintoma de que o governo não sabia o que fazer com esse
problema, o então governador de São Paulo, à época Jânio Quadros, 1956,
nomeou oficiais de média patente para desempenhar funções inafastáveis
da Polícia Civil.
Era impositivo que o governo tomasse uma atitude, pois o contingente
miliciano causava inquietação na população, à qual era reverberada pela
imprensa que, ao mesmo tempo em que destacava a criminalidade, criticava
a inércia da polícia miliciana.
Diante de tudo isso o governo cada vez mais demonstrava clara
intenção de reunir as três forças policias, a Guarda Civil e a Polícia
Civil com funções bem definidas e a Força Pública que “vagava como um
corpo errante à procura de sua alma”.
A tentativa mais próxima da unificação dessas forças policias se deu
quando, ainda no governo Jânio Quadros, um grupo de trabalho que esteve
na Inglaterra conhecendo a estrutura Scotland Yard, cujo
minucioso relatório apresentado pela comissão no intuito da unificação
foi rejeitado pelo forte corporativismo que já imperava naquela época.
O golpe de 1964, fundado na ideologia autoritária da segurança
nacional, por motivos óbvios, ainda que teratologicamente, resolveu o
impasse, tendo em vista a necessidade da criação de uma força militar
suplementar para o enfrentamento dos atos considerados subversivos,
sobretudo os atos de guerrilha, a Força de Segurança assumiu com
propriedade essa função.
No Estado de São Paulo a Guarda Civil e a Força Pública foram
fundidas, surgindo daí a Polícia Militar, e esses mesmos passos foram
seguidos pelas demais Unidades da Federação, que adotaram as mesmas
medidas de fusão.
O decreto-lei 667/69 atribuiu ao Ministério do Exército o controle e
supervisão da “nova polícia”, denominada militar, em uma espécie de
substituição às Forças Públicas e às Guardas Civis, sendo que em nível
regional o cargo de inspetoria geral das Polícias Militares foi
destinado a um general de brigada da ativa.
Segundo Hélio Bicudo, autor utilizado para tecer essa breve digressão histórica:
“A centralização das Polícias Militares, com sua subordinação direta
ao Exército foi uma decisão diretamente ligada às dificuldades das
Polícias Civis em lidarem com as tarefas impostas pela consolidação do
regime autoritário, bem como ao desempenho das antigas forças policiais
estaduais– Forças Públicas ou Brigadas – na luta armada posta em cena
por alguns setores da oposição”.
Continua o autor:
“O governo militar, a partir do golpe de 1964, tratou, como
se viu, de transformar as antigas milícias em forças auxiliares do
Exército, em obediência mesmo, repita-se, aos preceitos insertos na
ideologia da segurança nacional." Assim, o comando geral das Polícias
Militares passou a ser exercido por oficiais superiores do Exército e só
excepcionalmente, desde que houvesse anuência do Ministro do Exército,
por oficial da própria tropa, conforme dispõe o parágrafo 5º do artigo
6º, do decreto-lei 667 de 2 de julho de 1969, ainda em vigor.
Aliás, toda a legislação posterior ao golpe de 64 teve como tônica
a preocupação de subordinar as milícias estaduais ao comando geral e
central das Forças Armadas, donde se pode concluir, ainda hoje, que as
Polícias Militares não são corporações subordinadas aos governos
estaduais, mas diretamente sujeitas, hierárquica e operacionalmente, ao
Exército; que o Estado Maior do Exército exerce, ainda, fiscalização
administrativa sobre as Polícias Militares, mediante a atuação da
Inspetoria Geral das Polícias Militares (artigo 23 e parágrafo 3º do
regulamento 200); e mais, que esses vínculos de subordinação
hierárquica, operacional e administrativa são permanentes.”
Por fim, cabe colacionar como aludido autor enxerga a Polícia Militar
quando perde umas das finalidades mais marcantes para a qual foi
criada:
“As Polícias Militares passam, no momento em que se interrompe a
guerrilha, ao enfrentamento do crime convencional. Vão desenvolver,
então, sua guerra contra o crime, utilizando as mesmas práticas e
valendo-se da mesma impunidade. Os métodos e o equipamento utilizado nas
operações policiais apagaram a linha de separação que havia entre
operações militares e operações policiais. Como as políticas públicas
não têm tido condições de encontrar soluções para a criminalidade, o
crime é resolvido mediante a utilização de métodos militares, sob a
inteira responsabilidade do aparelho militar central”. (Bicudo, 2000).
4. POLÍCIA CIDADÃ: ANTÍTESES E PROPOSTAS
É um grande cinismo, hipocrisia deslavada asseverar que hodiernamente
a Polícia não é mais do Estado, mas sim do cidadão, quando no primeiro
momento em que os cidadãos reivindicam alguma coisa com maior
contundência são recebidos à bala, mordidas de cachorro, borrachadas nas
costas, tapas na cara, chutes etc., sendo que equipamentos não letais
são utilizados de forma incorreta, tornando-os muitas vezes letais.
Ora, o Estado tem que ter um contingente treinado como meio
dissuasório para que manifestações não virem uma baderna, para atender
demandas em que o Estado seja parte e necessite preservar e garantir a
ordem pública. Por que então não assumir que se tenha uma força de
segurança com esse condão?
O que não pode é uma força a serviço do Estado com atribuições de
polícia, e pior, na contramão dos países desenvolvidos, uma força
militar com funções de polícia. Isso é excrescência, pois as atribuições
de polícia no Estado Democrático de Direito têm de estar a cargo das
autoridades civis.
Em verdade, de fato, não se pode servir a dois senhores, embora
apenas na aparência haja essa dualidade, a Polícia Militar é a Polícia
do Estado, e não há argumentos que derrubem essa afirmação.
Sustentar o contrário porque nas ruas os policiais chamam os
suspeitos de cidadãos, muitas vezes até com entonação sarcástica e de
forma pejorativa, ou porque se importou os modelos de Polícia
Comunitária dos EUA, Canadá, Espanha, Japão e outros, não fragiliza o
que se asseverou.
Não se quer, de forma nenhuma, menosprezar o trabalho da Policia
Militar, que dentro do que lhe é confiado pelo próprio Estado, realiza
importante papel de combate à criminalidade, e em muitos casos, o
esforço e a criatividade da maioria desses policiais, que são abnegados e
comprometidos, e atuam na boa-fé, prestam serviço relevantíssimo, a
favor do Estado, e até mesmo em prol do cidadão.
Mas há que se entender, de uma vez por todas, que a questão é de
modelo, gênese, cabendo repisar que Polícia Militar no Estado
Democrático é contrassenso, e jamais, nunca e em tempo algum, será a
Polícia do cidadão, é resquício da ditadura, e os países
latino-americanos que conservam aludido modelo possuem a mesma tradição
ditatorial.
Não é argumento assaz, como se busca muitas vezes, destacar a França,
por exemplo, como Nação desenvolvida que mantém uma Polícia Militar, a gendarmerie,
organizada por Napoleão Bonaparte, cujas características foram
importadas para outros países, inclusive o Brasil, mormente no Estado de
São Paulo, uma vez que o modelo resta esgotado e é criticado no próprio
país e em toda a Europa. Da mesma forma, o modelo italiano com os carabinieris ou qualquer outro que siga os passos das gendarmerie, que, de toda sorte, não tem vínculo com o Exército, como no Brasil.
Ademais, o modelo francês é bastante intrincado, e os gerdarmes – etimologicamente “gente de armas” (gens d'armes) – são integrantes da Guarda Nacional, herdeira das Maréchausséem
(que no Antigo Regime francês era um corpo de cavaleiros encarregados
de resguardar a segurança pública), é reconhecidamente a Polícia do
Estado, sendo que as funções de Polícia urbana estão a cargo da Polícia
Nacional (de caráter civil), subsistindo além dessas duas Polícias de
caráter nacional outros organismos policias, notadamente com funções
mais administrativas (LÉVY, 1997, p.55).
Da mesma forma é inócuo citar os EUA no tocante a falsa similitude de
patentes de sargento, tenente, capitão. Lá não há patentes, mas sim
cargos, e não há uma hierarquia militarizada, a Polícia está a cargo de
autoridades civis.
O fato de haver policiamento uniformizado não implica afirmar que a
estrutura é militar, uniforme não quer dizer militarismo, uniforme é
ostensividade, prevenção, e isso todo país deve ter, uma força
uniformizada, e com técnicas modernas, armas não letais, sem uso de
fuzis e submetralhadoras no meio das comunidades rotuladas, como
acontece no Brasil e que corrobora o que se vem sustentando, ideologia e
cenário de guerra.
De outro lado, no Brasil as Polícias Militares não usam simples
uniformes, são fardamentos semelhantes aos do Exército, em que se
ostentam postos, patentes e condecorações. A estrutura fortemente
hierarquizada é advinda do Exército. Afinal, são os exércitos das
Unidades da Federação, e isso por si só causa distanciamento da
população.
O ideal é que, ao se precisar de uma ação mais efetiva, com o uso de
armas mais incisivas, como fuzis, por exemplo, o Estado disponha de uma
força tática exclusiva. As Polícias Civis do Brasil possuem grupos
táticos, e nem por isso são militares.
Destarte, penso que uma possível solução seria soerguer uma nova
Polícia, obviamente de caráter integralmente civil, com departamentos
especializados, inclusive um uniformizado, que como ressaltado, não
significa militarizado, mas todos vinculados a um só centro de comando,
evitando dispersão de estruturas físicas, equipamentos, setores de
inteligência, comunicação e policiais.
Entre outras coisas essa providência evitaria os corporativismos de
lado a lado, entre Polícia Civil e Militar, a mal disfarçada e notória
intolerância de parte a parte, que beira à inimizade e as nem sempre
frustradas investidas da Polícia Militar na usurpação de atribuições
reservadas à Polícia Civil, que muitas vezes conta com a legitimação do
próprio Poder Judiciário. E atente-se, isso gera perigosos precedentes.
Outro fato relevante seria o desmonte da Justiça Militar, um
verdadeiro achaque à democracia, um desserviço e legitimação espúria de
injustificado corporativismo, foco de impunidades e afronta aos
princípios mais elementares de Justiça, uma aberração sui generis.
Na nova Polícia, ou reestruturação da Polícia Civil como Polícia
determinante, os policiais militares que quisessem migrar seriam
submetidos a uma nova formação, e compatibilizados nos cargos de acordo
com o grau de instrução etc.
Essa migração não é hipotética, já que em todos os Estados da
Federação é comum policiais militares fazerem concursos para
investigador, escrivão e Delegado de Polícia.
Mas isso é comum no caso das praças ou até mesmo entre os oficiais de
baixa ou média patentes. Assim, de acordo com o que se expendeu no
tópico acima, a Polícia Militar é força auxiliar e de reserva do
Exército, isso é constitucional, logo, o alto oficialato, que é
resistente e radicalmente contra as mudanças e sempre impõem o seu lobbye,
ou os que não tenham vocação ou não queiram ficar na nova Polícia,
podem ser absorvidos pelo Exército, mantendo seus postos ou patentes,
prerrogativas etc.
Cabe apenas destacar que, no caso de delegado de polícia é
inarredável o concurso público específico, já que não há consonância ou
qualquer similitude com nenhum posto, patente ou função militar, e mesmo
a atuação jurídica que se exerce em âmbito da Policia Militar é baseada
no Código Penal Militar, Código de Processo Militar, isto é, legislação
militar.
Essa nova Polícia, contudo, deve ter consagrada sua independência
funcional, e não como é hoje, em que muitas vezes também funciona como
Polícia do Estado, não sendo raros os casos de delegados que atuam
contra os mandos de poder, serem abruptamente deslocados de suas
lotações como forma de punição branca, com falaciosas justificativas de
interesses e necessidade públicos.
Os delegados devem ser guindados às carreiras jurídicas e com as
mesmas garantias constitucionais conferidas aos magistrados e promotores
de justiça, pois da mesma forma que os policiais, os juízes e
promotores também recebem seus subsídios do Poder Executivo, são
nomeados e empossados pelos Chefes do Executivo, mas possuem autonomia e
independência, o que, em âmbito policial cinge-se apenas aos estatutos
internos, mas não há força constitucional, ficando-se à mercê de muitos
dirigentes policiais comprometidos com a política, e não com a
Instituição e os seus destinatários, o cidadão.
Isso sem falar da urgência de um investimento maciço em qualificação
pessoal, e em equipamentos, desde os mais primordiais, que nem sempre
são uma realidade para os policiais, tanto civis quantos militares,
quanto os mais sofisticados. No Brasil Segurança Pública, no capítulo
Polícia, ainda é tratado de forma secundária, superficial e
amadorística.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pretendeu em nenhum momento depor contra a Instituição Polícia
Militar, depreciar ou ridicularizar seu trabalho, pois na verdade a
Instituição cumpre seu papel dentro de uma delegação legal conferida
pelo próprio Estado.
Os argumentos não foram direcionados para se aferir se o trabalho da
Polícia Militar é bom ou ruim, nem mesmo afirmar que a Polícia Civil no
Brasil é um padrão de excelência, pelo contrário, está bem longe disso,
mas é imperioso que se alcance esse jaez.
Em realidade não se deveria lançar uma análise à Polícia Civil ou à
Polícia Militar, deveria ser somente em relação à Polícia, e essa
própria dualidade sozinha já se traduz numa dificuldade em se buscar
melhorias e aperfeiçoamentos em favor do cidadão.
Cidadão, aliás, que não é pleno em seus direitos, e muitas vezes são
alvos de ambas as Polícias, fruto de um preconceito arraigado em nossa
formação histórico-cultural latifundiária e escravista que rotulou quem
são os “clientes” da Polícia.
Nossas leis são elitistas, tomando, por exemplo, a lei dos crimes
hediondos que trouxe em seu rol crimes tipicamente cometidos pelos
marginalizados do sistema capitalista, mas não contemplou nenhuma medida
contra os grandes sonegadores de impostos, fraudadores da previdência
social ou contra os criminosos do colarinho branco em geral.
Subsiste o cúmulo de ainda hoje a legislação considerar infração
penal a vadiagem, mas isso só vale ao pobre, pois se o indivíduo tiver
condições financeiras e for, eufemisticamente, ocioso, não há
consequência nenhuma, nesse caso será um excêntrico.
Há premência em se desmascarar o Estado, e por isso a importância da
participação popular, ou da sociedade civil como um todo (fugindo da
questão conceitual), pois nos passos de Gramsci a coletividade é o
príncipe moderno.
Pode-se albergar um setor de segurança de contornos militares, mas
não com função de Polícia, pois esse desiderato deve ser reservado
apenas e tão somente a um ramo policial de ordem estritamente civil,
estruturada para ser imparcial, inclusive com independência funcional
inabalável e quer permita sem assombros investigar quem quer que seja, e
sendo a legítima polícia do cidadão.
Por fim, quando se adjetiva com o vocábulo “cidadã” o substantivo
“Polícia”, afigura-se em um complexo, recalque, pois seria despiciendo
esse recurso, já que a Polícia no Estado Democrático de Direito é sempre
cidadã, é uma obviedade quebrada pelo nosso modelo de Polícia que sofre
de uma síndrome de hermafrodita, é cidadã quando convém e é do Estado
quando da mesma forma lhe é conveniente.
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10737
Referências bibliográficas:
BALESTRELLI, R.B. Direitos Humanos: coisa de polícia. Passo Fundo, CPEC/Anistia Internacional, 1998
BICUDO, Hélio. A Unificação das Polícias. Estudos Avançados 14 (40), 2000.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, 8ªed., São Paulo: Malheiros, 2007.
BRETAS, M.L. Observações sobre a falência dos modelos policiais. Tempo Social, São Paulo, Editora USP, n.9, maio 1997
João Romano da Silva Junior
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR,
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Política Social na
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT; Pós-graduado em Direito
Aplicado pela Escola da Magistratura, Maringá-PR, Especializando em
Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do
Ministério Público do Mato Grosso; Delegado de Polícia – PJC/MT.