Protagonistas das ações mais espetaculares da rede anarquista não foram nem sequer fichados pela polícia
Os
back blocs que executaram as ações de grande repercussão do ano
passado continuam fora do radar da polícia, e prometem transformar a
Copa do Mundo “num caos”. Para isso, alguns deles esperam que o Primeiro
Comando da Capital (PCC), a organização que domina os presídios
paulistas e emite ordens para criminosos soltos, também entre em campo.
Não se trata de uma parceria, mas de uma soma de esforços.
Com o
compromisso de não identificá-los, o Estado ouviu 16 desses black blocs,
em seis encontros, na última semana. À diferença dos adolescentes que
os imitaram em depredações, e que acabaram arrolados em um inquérito do
Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), eles são
adultos, seguem tática desenvolvida há décadas na Europa e nos Estados
Unidos, não têm página no Facebook nem querem aparecer.
Dos
20 que formam o núcleo da rede, apenas um foi fichado, porque foi
detido em uma manifestação. Movem-se na sombra do anonimato,
articulam-se nacionalmente, e nunca haviam dado entrevista antes.
Preocupados com sua imagem perante a opinião pública, decidiram falar,
pela primeira vez. “Vamos estourar de novo agora”, promete o mais
veterano deles, de 34 anos, formado em História na USP e com matrícula
trancada no curso de Psicologia.
“A gente vai devolver o
troco na moeda que o Estado impõe”, ameaça o ativista, que trabalha para
um hospital público de São Paulo. “O caos que o Estado tem colocado na
periferia, por meio da violência policial, na saúde pública, com pessoas
morrendo nos hospitais, na falta de educação, na falta de dignidade no
transporte, na vida humana, é o caos que a gente pretende devolver de
troco para o Estado. E não na forma violenta como ele nos apresenta. Mas
vamos instalar o caos, sim. Esse é um recado para o Estado.”
“A
gente tem certeza de que o crime organizado, o PCC, vai causar o caos
na Copa, e a gente vai puxar para o outro lado”, continua o veterano.
“Não temos aliança nem somos contra o PCC. Só que eles têm poder de fogo
muito maior do que o MPL (Movimento Passe Livre, que iniciou as
manifestações, há um ano, com ajuda dos black blocs). Pararam São
Paulo”, acrescentou, lembrando as ações do PCC na década passada.
O
veterano e uma bailarina de 21 anos, que abandonou um curso em uma
universidade pública para se dedicar exclusivamente à causa, contaram
que membros do PCC receberam bem na Penitenciária do Tremembé (interior
paulista) dois black blocs presos na manifestação de junho do ano
passado do MPL. “Colocaram colchões para eles.” Igualmente, o Comando
Vermelho acolheu um ativista preso no Rio.
“Os 'torres'
respeitam o que fazemos, por causa do nosso idealismo”, explica o
veterano, usando o jargão que designa os líderes do PCC. “Eles fazem por
lucro e a gente, contra o sistema. Não nos arriscamos por dinheiro, mas
para que a mãe deles também seja atendida pelo SUS.” O veterano
prossegue: “Sou nascido e criado na ZL (zona leste). Conheço muito a
cara do PCC. Somos os nerds do lado da casa deles. O crime organizado
respeita a gente porque nasceu de mentes pensantes. Por isso talvez não
nos coloquem na cadeia”, interpreta, intrigado com o fato de a polícia
não os incomodar. “Porque vamos fazer uma revolução lá.”
Tática.
O veterano, que cita o anarquista canadense George Woodcook e os
Racionais MC, emprega “a tática”, como eles a chamam, desde 2001, quando
“quebrou” o Parque d. Pedro, no centro de São Paulo. Em princípio, a
função assumida pelos black blocs é a de resistir à repressão e proteger
os manifestantes, interpondo-se entre eles e a polícia. Mas também a
provocam, quando acham politicamente conveniente fazer com que ela perca
o controle e a razão diante da opinião pública, de modo a atrair
simpatia para um movimento.
Foi assim há um ano, na Praça
da Sé, em protesto do MPL, quando o veterano, protegendo-se apenas com
sua mochila, investiu contra a polícia de choque. Pegos de surpresa, os
policiais dispararam bombas de gás lacrimogêneo, que atingiram a
multidão, enquanto ele saía de cena, ileso. A partir dali,
intensificaram-se os distúrbios.
Os black blocs, que não
são um grupo estruturado, mas uma rede, que vai se formando
espontaneamente, no contato nas ruas, queimaram carros de emissoras de
TV e da polícia, depredaram 14 bancos (em 40 minutos) e a sede da
Prefeitura. Protegidos por barricadas e beneficiados pela surpresa e
pelo despreparo da polícia, não foram pegos.
Mas receberam a
adesão de cerca de 100 adolescentes, que, numa explosão de fúria, ou
por terem apanhado da polícia nas manifestações ou por ressentimentos
trazidos da periferia onde moram, partiram para um quebra-quebra
descontrolado, de tudo o que aparecesse na frente. Incluindo carros,
lanchonetes e bancas de revista cujos donos pouco têm a ver com os
“símbolos do capitalismo” visados pela doutrina anarco-socialista que
predomina entre os black blocs. O núcleo original, então, saiu de cena.
Voltou há uma semana, em uma manifestação pacífica na Praça da Sé. “A
gente estava bem armado”, disse o veterano, sem detalhar o tipo de arma.
Eles têm usado coquetéis molotov, pedras e escudos improvisados.
“A
ação black bloc é mais incisiva e intensa numa manifestação pacífica”,
afirma o veterano. Segundo ele, as ações têm de ter uma razão de ser.
“Não vejo sentido em quebrar banco na Copa”, exemplifica. Mas a
violência contra bens materiais - e não contra seres vivos, com exceção
de policiais - é justificada pelos praticantes da tática. E desculpada,
no caso da ação “aleatória” de adolescentes da periferia. “Não existe o
errado e o certo”, pondera. “É a revolta dele.”
Frustração.
“Ocupamos durante cinco meses a frente da Assembleia Legislativa,
cheios de boas intenções”, lembra um estudante de Direito de 22 anos.
“Apresentamos uma pauta de reivindicações. Não deu em nada. Manifestação
pacífica não dá resultado.”
“No último ano, houve 30
protestos, 4 muito violentos, que foram os mais noticiados”, contabiliza
um profissional de Marketing e estudante de Ciência Política de 32
anos, que doutrina os black blocs e seus seguidores com textos
anarquistas. “Os outros não receberam uma linha.”
A
socióloga espanhola Esther Solano, professora da Universidade Federal de
São Paulo e pesquisadora dos black blocs, vê uma distorção nessa
atenção dada às depredações. “Num país onde mais de 50 mil pessoas são
mortas por ano, como é possível essa histeria com 40 garotos?”,
pergunta. “Um país que naturaliza tanto a sua violência não tolera ver a
violência na Avenida Paulista.” O veterano acrescenta: “No Brasil,
choca mais 14 bancos quebrados do que a polícia matar 6 crianças”.
“A
manifestação não pode ser pacífica, sendo que é resposta à repressão
estatal e capitalista”, argumenta um rapaz de 18 anos, que estuda e
trabalha, mas não quis dar mais detalhes sobre si mesmo. “O Estado sendo
opressor, esmagando a população, obrigando a morrer na fila do SUS,
isso é violento, e a resposta é autodefesa.” O veterano completa: “É
legítimo quebrar banco. Quantas pessoas os bancos quebram por dia?” Com
relação a depredar bens públicos que depois terão de ser reparados com
dinheiro dos impostos, ele responde: “O imposto já é roubado. Dizer que o
dinheiro vai sair do nosso bolso é mentira, porque já saiu. Alguém tem
saúde digna? Então não reclame de vandalismo.”
Contágio. Os
black blocs acreditam que sua revolta esteja se espalhando pelas
camadas mais pobres da população. “O bagulho que mais gostei da semana
passada foi a greve dos motoristas”, disse a moça de 21 anos, que vive
da renda de um aluguel. “Estamos mostrando na rua a tática, e queremos
que as pessoas se apropriem”, acrescenta uma estudante de Ciências
Sociais “na casa dos 30”, que, como muitos deles, tem receio de fornecer
detalhes nesta reportagem e finalmente entrar no radar da polícia. “A
barricada é útil quando o Choque chega para desocupar uma área”,
exemplifica. “Uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) foi queimada em
uma favela do Rio em protesto contra a violência policial.”
Sete
membros do núcleo participaram da ocupação da Câmara Municipal do Rio,
no ano passado. Eles também estão associados a um grupo no Recife, uma
das cidades do Nordeste que visitaram. “Fomos fazer campo de base”,
disse o veterano. Ativistas colombianos e venezuelanos vieram trocar
experiências com eles. A bailarina está interessada nos zapatistas, e
prepara-se para ir visitá-los no México. Ela gosta do filósofo
germano-americano Herbert Marcuse, ideólogo da contracultura, para quem
“não temos que quebrar o sistema nem por dentro nem por fora, mas por
suas brechas”.
Alguns abandonaram estudos e trabalho para
se dedicar à causa em tempo integral. Outros a conciliam com uma vida
“normal”. Têm carros e cedem seus apartamentos para a “causa”. O
repórter do Estado esteve em dois “aparelhos”, para usar um termo dos
anos 70, na região da Avenida Paulista. Num deles, o anfitrião calçava
pantufas de ursinho. Em duas situações, o repórter viu black blocs dando
esmolas na rua. Pessoalmente, são gentis e educados, em contraste com a
imagem de violência associada a eles.
O perfil social dos
black blocs é variado. Alguns são pobres e moram na periferia. Outros
são de classe média baixa e vivem na região central da cidade. O
repórter conheceu apenas um caso de um rapaz de classe alta, cujos pais
moram em um bairro nobre de São Paulo. Depois de ler o primeiro texto
anarquista, aos 13 anos, pediu para seus pais pararem de pagar escola
para ele. Hoje com 18 anos, mora com a namorada na região oeste de São
Paulo, trabalha e estuda, e participa das ações mais ousadas dos black
blocs.
Polícia. Quase todos concluíram, abandonaram ou
fazem faculdade. E sofreram violência policial. Quando o veterano tinha
14 anos, a polícia veio despejar sua família do barraco em que viviam,
no Parque São Luís, na zona norte de São Paulo. “Estávamos devendo o
aluguel e parece que o dono tinha um parente militar, porque a polícia
não pode chegar assim, sem um mandado”, recorda. “Um policial alterou a
voz com a minha mãe, entrei na frente e ele deu um tapa na minha cara.
Eu nunca tinha apanhado, nunca tinha tacado pedra na polícia. Hoje, jogo
coquetel molotov com gosto.”
“A maioria dos presos é
punk”, diz o veterano. “A gente 'cola' muito com os punks. São
inteligentes, não são vândalos”, continua, empregando esse termo para
quem depreda aleatoriamente, sem seguir a tática, que preconiza ações
com motivo claro. “Não cobrem a cara. Em tudo o que eles acham justo,
eles estão. A polícia prende os punks e, por causa da cor da roupa, diz
que são black blocs.”
Um rapaz de 20 anos conta que aderiu à
tática depois de levar três balas de borracha da polícia - uma na perna
esquerda e outra nas costas, no distúrbio na Rua Maria Antonia, no dia
13 de junho; e uma no estômago, na manifestação do 7 de Setembro, a que
teve a maior participação de black blocs e de seus seguidores
adolescentes.
“Não vejo sentido em quebrar banco, mas vejo a
polícia como órgão repressor, e nosso papel é proteger os
manifestantes”, assinala o rapaz, que estuda Direito em uma faculdade
privada, com 100% de bolsa do ProUni, e faz estágio em uma imobiliária.
Ele mora em um bairro da região central com a mãe, empregada doméstica.
A bailarina afirma ter sido assediada sexualmente por policiais, antes de aderir à tática.
Um
programador de 32 anos que apoia o movimento acredita que seu pai, que
era dono de um bingo, tenha sido morto por policiais, por não pagar a
quantia exigida por eles para manter o negócio funcionando, quando se
tornou ilegal, em 1998. Seus conhecimentos profissionais são valiosos
para os black blocs, que se apoiam na atividade de hackers. No primeiro
encontro com o repórter do Estado, o veterano lhe disse: “O seu CPF não é
de São Paulo”, para deixar claro que o havia investigado.
http://estadao.br.msn.com/ultimas-noticias/black-blocs-prometem-caos-na-copa-com-ajuda-do-pcc