Sem auxílio emergencial e no pior momento da pandemia, mães da periferia enfrentam a fome enquanto se protegem da covid-19
Há mais de três meses sem receber o auxílio emergencial, que garantia as compras de supermercado pelo resto do mês e a possibilidade de praticar o isolamento social com os três filhos, a ambulante Helena Leite, de 41 anos, agora sai à rua diariamente, no pior momento da pandemia de covid-19, em busca de comida.
"Eu conheço gente que já morreu por causa dessa covid-19. Dá medo. Eu vou para o mercado, para esses lugares assim, mas vou com medo de trazer para casa, porque tem meus filhos lá. Mas fazer o quê? Ou eu me arrisco ou meus filhos passam fome", diz a dona de casa ao R7.
Mesmo saindo para pedir por restos de comida em açougues, padarias e feiras onde mora, na Brasilândia, extremo norte da cidade de São Paulo, Helena não conseguiu evitar totalmente a fome. Sem o auxílio e o serviço de diarista, sua antiga profissão, ela já chegou a passar três dias só se alimentando de arroz no momento de mais aperto.
"Tenho 41 anos, a pessoa com essa idade dificilmente arruma um emprego. O máximo que for para mim arrumar é como diarista em uma casa de família, e nem toda casa confia nessas pessoas", relata Helena, que não recebe nenhuma ajuda do pai de seus três filhos.
Em um país com cerca de 39 milhões de trabalhadores informais, situações como a de Helena se repetem pelas áreas mais pobres das cidades e já fazem mais de 10 milhões de brasileiros passar por insegurança alimentar grave, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Para o professor e coordenador da Cátedra Dom Helder de Direitos Humanos da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco), Manoel Severino Moraes de Almeida, o problema ainda pode aumentar no Brasil e colocar o país no Mapa da Fome da ONU (Organizações das Nações Unidas).
Ele também considera baixos os novos valores do novo auxílio emergencial, que vão variar de R$ 150 a R$ 375, a serem pagos partir de abril.
"O governo está disponibilizando recursos, mas em um nível muito pequeno para o suporte de uma família que precisa de alimentos para seu sustento e sua sobrevivência. Então é muito grave, uma ajuda ineficiente. Ela vai criar uma expectativa de cobertura mas não representa efetivamente a solução do problema", disse o professor.
O R7 conversou com outras três mulheres em situação parecida à de Helena, que viram os empregos e serviços sumirem por conta da pandemia, passando a depender de doações de associações comunitárias e de outros benefícios para sustentar suas casas.
Além da falta de emprego e o risco recorrente ao sair de casa, as entrevistadas reclamaram do preço dos alimentos que chegam a registrar 15% de inflação nos supermercados de São Paulo.
"As coisas estão um absurdo, está tudo caro. A gente vai em um mercado com R$ 50 e não faz nada. Arroz, feijão, açúcar, óleo, pronto já deu R$ 100 praticamente. Minha amiga pagou na semana passada R$ 104 em um botijão de gás", diz a cuidadora de idosos, Michelle Maria da Silva, de 37 anos.
Depois de mais de um ano desempregada, Michelle finalmente conseguiu um trabalho, como cuidadora, e poderá começar a pagar seus alimentos.
A diarista Luzinete Andrade, de 47 anos, ainda aguarda ser chamada de volta no antigo emprego. "A senhora pediu para eu ficar em casa que depois ela me chamava, mas acabou não chamando mais", relembra sobre quando foi dispensada do trabalho, no início da pandemia. Enquanto o emprego e auxílio não vêm, ela trabalha durante a noite nas ruas da Brasilândia, coletando latinhas recicláveis para ganhar algum dinheiro.
Para sobreviver, além das doações, Luzinete recorre aos sogros para sustentar as duas filhas. O pai das crianças não ajuda com frequência. "Quando o negócio aperta aqui a gente vai para a casa da avó. Almoça, janta e volta para casa", relata.
Quem também garante o mínimo de renda própria por meio da coleta de materias recicláveis é Eni de Jesus, de 64 anos, moradora do Itaim Paulista, na zona leste da capital. Porém, depois de ser atropelada há oito anos e quebrar o fêmur, a idosa não consegue mais coletar e vender partes aos ferros velhos como antes, e depende cada vez mais de caridade.
Luzinete, com suas duas filhas. Ela diz que não esperava que a pandemia fosse durar tanto .
"Eu não sei o que vou fazer. A minha necessidade é tremenda e eu tenho vergonha de sair pedindo, de muleta. Eu estou em desespero"
A crise também atinge as associações comunitárias dos bairros carentes, responsáveis por grande parte das doações de comida à população carente da região. Dependendo de voluntários e da ajuda de empresas e supermercados para conseguir os alimentos, as organizações temem falta de abastecimento.
"A partir de janeiro de 2021 as doações caíram em 70% e com o aumento da covid dobrou os pedidos de alimentos pelas famílias de baixa renda, desempregados e pessoas que tiveram a renda comprometida", diz o líder comunitário e representante da Associação dos Moradores de Brasilândia e Cachoeirinha, Henrique Deloste.
O analista de sistemas Régis Martins, que coordena as doações na região do Itaim Paulista, na zona leste da cidade de São Paulo, fala que as remessas de alimentos diminuíram desde maio do ano passado, em meio ao primeiro pico da doença.
"No momento não temos mais cestas para doar e as pessoas estão pedindo, então precisamos de empresas, de pessoas para ajudar", diz o voluntário, que faz parte da Associação Jardim Virginia Itajuíbe, que ajuda famílias carentes do Itaim Paulista.
Encerrado oficialmente em dezembro do ano passado, depois de distribuir R$ 294 bilhões para 68 milhões de brasileiros no período de oito meses, o auxílio emergencial voltará a ser pago a partir de abril. Serão cerca de 45,6 milhões de pessoas beneficiadas com valor médio de R$ 250, pagos em quatro parcelas mensais.
O auxílio de 2021 será limitado a uma pessoa por família, sendo que mulher chefe de família terá direito a R$ 375, enquanto o indivíduo que mora sozinho – família unipessoal – receberá R$ 150. O valor de R$ 250 vai para famílias com dois ou mais integrantes.
O valor para pagamento do benefício, aberto após a promulgação da PEC Emergencial, veio seguido de gatilhos de contenção fiscal para Estados e municípios. No entanto, a professora de Direito e Políticas Públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC), Carolina Stuchi, opina que, especialmente durante a pandemia, o gasto público será fundamental para garantir renda e saúde.
"Dívida pública não pode se sobrepor à vida das pessoas. É importante ter responsabilidade em relação às despesas públicas mas nesse momento o gasto público é necessário e, se preciso for, pensarmos na reforma tributária, com ampliação da arrecadação, com outras medidas que não sejam cortar gastos", pontuou.
No futuro, defende Stuchi, tirar tantos brasileiros da miséria e da fome dependeria de um programa de renda universal, aliado a outras estratégias de transferência de recursos para proteção social.
"A gente já tem vivido desde a PEC 95 [Teto de gastos] um corte nos gastos com os serviços. Isso atinge educação e saúde, mas muito mais a assistência social, que é uma política que não tem vinculação orçamentária, mas tem serviços essenciais para fazer essa complementação do direito à renda, para gantir a vida e sobrevivência das pessoas", conclui.
https://noticias.r7.com/economia/ou-eu-me-arrisco-ou-meus-filhos-passam-fome-diz-ambulante-em-sp-24032021
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