Waris Dirie tinha 5 anos quando foi circuncidada com navalha; Somália é o país que mais pratica mutilação genital no mundo: 98% das somalis de 15 e 49 anos passaram pelo procedimento
O
som rítimico dos tambores ainda ecoa nas lembranças de Waris Dirie cada
vez que ela ouve falar sobre mutilação genital feminina. A somali tinha
5 anos quando foi acordada pela mãe no meio da noite e levada a um
local ermo. Quando viu uma mulher seguir em sua direção com uma lâmina
de barbear quebrada, não teve dúvida: seria mutilada.
Waris Dirie tinha 5 anos quando foi circuncidada com navalha; Somália é o país que mais pratica mutilação genital no mundo: 98% das somalis de 15 e 49 anos passaram pelo procedimento
O
som rítimico dos tambores ainda ecoa nas lembranças de Waris Dirie cada
vez que ela ouve falar sobre mutilação genital feminina. A somali tinha
5 anos quando foi acordada pela mãe no meio da noite e levada a um
local ermo. Quando viu uma mulher seguir em sua direção com uma lâmina
de barbear quebrada, não teve dúvida: seria mutilada.
"Fechei
meus olhos e rezei para que fosse rápido. E foi, já que desmaiei de
tanta dor e só acordei quando já havia acabado. Foi horrível. Senti como
se tivesse perdido um braço", lembra Waris, hoje com 49 anos, durante
conversa com o iG.
Assim como Waris, 98% das
mulheres com idade entre 15 e 49 anos foram submetidas à mutilação
genital na Somália, segundo dados divulgados pelo Fundo das Nações
Unidas para a Infância, o Unicef, coletados em 29 países entre a África e
o Oriente Médio, onde se concentra a prática. Depois da Somália,
a Guiné tem o segundo maior índice de circuncidadas: 96%. Djibouti e
Egito têm, respectivamente, 93% e 91% da população nessa faixa etária
mutilada. Em Eritreia e no Mali, o número chega a 89%. Em Serra Leoa e
no Sudão, a prevalência é de 88%.
Tradição milenar
Todos
os anos, cerca de 3 milhões de meninas são submetidas à mutilação
genital no mundo. Somado ao impacto do crescimento populacional, o
número pode chegar a 63 milhões de mutilações genitais femininas até
2050, estima o Unicef.
A tradição de ao menos cinco mil anos de
história que consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e
grandes lábios da vagina. Em algumas localidades, o corte ainda é feito à
navalha.
De acordo com Olga Regina Zigelli Garcia, pesquisadora
do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), o procedimento teria função sanitária – a mulher se
tornaria mais limpa após o ato – e também atenderia a questões
culturiais: o clitóris é visto por sociedades patriarcais como a falsa
representação do pênis e, portanto, competiria com a virilidade
masculina. Na maioria dos casos, a mutilação da vagina veta à mulher o
direito ao prazer sexual.
"A remoção das partes 'masculinas' e
'impuras' da vagina são procedimentos que, para os homens, torna as
meninas 'limpas' e 'bonitas'", complementa Sheema Sengupta, chefe de
proteção à criança do Unicef na Somália
Depois do procedimento, Waris passou duas semanas se
recuperando com hemorragia e febre alta. Para acelerar a cicatrização, a
criança teve pernas e tornozelos atados com tiras de pano por quase um
mês. "Mesmo sendo apenas uma garotinha, sabia que aquilo era errado.
Deus me fez perfeita. Não precisavam ter tirado uma parte de mim", diz
ela.
Théo Lermer, ginecologista, sexólogo e colaborador do
ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas (HC), explica que
tribos ainda realizam a mutilação genital extrema, onde a mulher tem o
clitóris e os pequenos lábios arrancados por meio de facões e navalhas,
sem o menor nível de profilaxia.
"Nesses casos, a vagina é
costurada e se torna, basicamente, os orifícios para urinar e menstruar.
Depois disso, durante a relação sexual, essa mulher sente bastante dor
e, quando engravida, corre sério risco de morrer. Se ambos sobreviverem,
é provável que a mulher sofra com fístulas", afirma.
Apesar
do sofrimento, Waris jamais se rebelou contra os pais. Pelo menos não
até os 13 anos, quando a família avisou que ela teria de se casar com um
homem bem mais velho. Na noite que antecedeu o matrimônio, a
jovem fugiu de casa e buscou abrigo junto a um tio que trabalhava em uma
embaixada. Levada
por ele para Londres, na Inglaterra, Waris se tornou empregada
doméstica na casa do embaixador da Somália, mas fugiu depois de meses
sem qualquer remuneração. Instalada em um albergue, a jovem conseguiu
emprego em um restaurante do McDonal’s, onde acabou sendo descoberta
pelo fotógrafo Terence Donovan e iniciou seu trabalho como modelo.
"Foi
um choque para uma garota muçulmana que não conhecia nada do mundo como
eu", brinca. "Depois disso, dei início à minha carreira. Foram muitos
desfiles e trabalhos publicitários. Mas jamais esqueci da mutilação
genital."
Para ajudar outras meninas que se submeterem à
mutilação genital e evitar que milhares de outras sofressem a mesma
dor, a ex-top model se tornou ativista social e escreveu o livro "Flor
do deserto", que posteriormente se tornou filme com título homólogo e
que teve a somali como co-produtora. Depois de anos modelando, Waris
passou a se dedicar exclusivamente à Desert Flower Foundation, ONG que
apoia mulheres afetadas pela mutilação genital e tenta proteger
possíveis vítimas. Hoje, Waris mora em Viena com os filhoa Aleeke, de 17
anos, e Leon, de 5.
Apesar da dor, mulheres da Somália defendem mutilação
No
país com maior número de mutilações genitais do mundo, 67% das mulheres
somalis não acham que o procedimento deve acabar. A porcentagem é
expressiva, mas ainda menor do que a da Guiné, que tem o maior índice de
aceitação do continente: 81% das mulheres são contra o fim da prática.
Mali, com 80%, Serra Leoa, 74%, e Gâmbia, 72%, completam a lista dos
países onde a maioria das mulheres apoia a circuncisão. Na contramão
desse movimento, 93% das mulheres de Benin e Gana acham que a prática
deve ser banida.
"Grande parte da população somali é
analfabeta. Claro que acreditam em várias tradições. As mulheres não têm
status social e são abusadas em todo a sua vida. Essa realidade precisa
mudar", diz Waris.
De
acordo com Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), como a mutilação genital
representa valores centenários para esses países, a permanência da
prática deve ser discutida e, em muitos casos, respeitada.
"Essa é uma cultura que passa de geração para
geração. Para nós ocidentais, por exemplo, é normal a mulher implantar
silicone em várias partes do corpo e fazer cirurgia de reconstituição de
hímen para ficar virgem novamente. Se a circuncisão não for total, não
acho que deveria ser erradicada", pondera.
Já Olga, do Instituto
de Estudos de Gênero da UFSC, acredita que o procedimento, considerado
uma violação dos direitos humanos, não pode ser mantido apenas por seu
"questionável valor cultural". "Essa prática, além de violar a dignidade
humana, também viola os direitos da criança, já que meninas entre
quatro e oito anos também são violadas. Não podemos legitimar crueldades
e desigualdades com a desculpa da tradição", argumenta.
Pelo fim da mutilação genital
Na
Somália, o procedimento é proibido por lei, mas nem sempre respeitado.
Em regiões como a autônoma Puntland, no nordeste somali, além da
legislação há ainda uma fatwa religiosa – decreto islâmico – impedindo a
prática. O Unicef em parceria com o Fundo de População das Nações
Unidas e o governo federal da Somália atuam para implementar novas
legislações sobre o assunto e contam com auxílio de assistentes sociais e
médicos, entre outros profissionais, para aconselhar a população a se
opor à prática nas áreas mais isoladas do continente.
"Para mudar
essa realidade, precisamos de uma combinação de ações e intervenções,
incluindo a execução de políticas sociais e de líderes religiosos como
influenciadores e agentes-chave nas comunidades", explica Sheema
Sengupta.
Terrorismo e fome
Alvo
de disputa no período colonial entre o Reino Unido, França e a Itália, a
Somália foi criada em 1960 e, desde então, seu desenvolvimento
econômico e social tem sido lento. Com a relação azedada com os vizinhos
Quênia, Etiópia e Djibouti por suas reivindicações territoriais, o país
só passou a desfrutar de alguma estabilidade a partir de 2012, com
a queda do presidente Barre e a instauração de um novo governo. Mas os
anos de ausência política expressiva trouxe consequências difíceis para a
nação.
O grupo terrorista Al-Shabab – A Juventude, em árabe –, responsável pelo ataque terrorista à universidade do Quênia que
deixou 148 mortos e cuja ligação com a rede Al-Qaeda é conhecida
internacionalmente, foi um resultado da crise. Criado em 2006 como uma
ala radical da extinta União das Cortes Islâmicas da Somália, que
combatia as forças etíopes apoiadoras do fraco governo interino, o grupo
tem grande influência nas áreas rurais do país e realiza ataques
sistemáticos tanto dentro quanto fora da Somália.
A ascensão da pirataria somali
também despertou preocupação internacional e levou até a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan) a assumir a liderança em uma grande
operação antipirataria. Os esforços internacionais começaram a dar
frutos em 2012, quando os ataques piratas caíram drasticamente nessa região.
Mas
os problemas do país não se limitam ao terrorismo. Entre 1992 e 2012, a
Somália contabilizou cerca de meio milhão de mortes em decorrência da
fome. Somente em 2011, durante uma das piores secas em seis décadas na
África, mais de 250 mil foram mortos – metade crianças com menos de 5
anos, conforme indicou o Consórcio de Organizações Não Governamentais.
Outros milhares ficaram à beira da inanição e fugiram para o Quênia e
Etiópia em busca de comida.
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-04-23/desmaiei-de-dor-lembra-top-model-da-somalia-sobre-mutilacao-genital.html
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