Pesquisa indica que apenas 5% das gestantes que frequentam a região fazem pré-natal adequado
Estar grávida e usar crack é sentir a mesma pedra alimentando duas
vidas, dois vícios. A criança se mexe muito no ventre durante a tragada e
depois ocorrem sangramentos, convulsões e tremedeira. Quando a vontade
de usar mais volta, o bebê fica agitado de novo. Ele cobra mais e também
sofre abstinência, tem as mesmas fissuras da mãe. Essas são as
sensações descritas pelas gestantes que conversaram com o R7 na Cracolândia, região central de São Paulo.
Katilene Oliveira dos Santos, de 27 anos, está grávida de quatro meses.
Ela foi para as ruas aos 11 anos, quando a mãe morreu de Aids e ela e
os três irmãos foram morar em abrigo. Conheceu as drogas aos 14 anos e,
aos 17, passou a usar crack, consumido até hoje.
Essa é a primeira gravidez de Katilene, que tenta reduzir o uso, mas
não conseguiu abandonar o cachimbo para ter uma gestação mais saudável.
— O máximo que eu aguento ficar sem [crack] são três dias. Depois eu
não consigo segurar, daí uso umas cinco pedras de uma vez. O bebê mexe
sem parar.
O marido também é usuário. Os dois vivem em uma pensão no entorno da
Cracolândia e ainda não sabem se vão ficar com a criança. A sogra de
Katilene se colocou à disposição para criar o neto ou receber os dois em
casa. A jovem ainda não decidiu o que pretende fazer. Só sabe que não
quer criar o filho nas ruas de São Paulo.
A gestante Daise Cordeiro de Lima, de 21 anos, assinou um documento
passando a guarda dos gêmeos que espera para a avó. Ela não consegue
criar os dois filhos que já teve, um de cinco e outro de dois anos, e
diz não querer que os bebês que vão nascer usem droga por "tabela".
A jovem conta que não quer mais engravidar e que já pediu para ser
operada. O medo é que seus filhos enfrentem as mesmas situações vividas
por ela. Daise conta que matou um homem depois que ele tentou
estuprá-la. Hoje, para sustentar o próprio vício e o do marido, ela faz
programa no centro.
— Eu não quero mais engravidar, olha a minha vida. O governo devia vir
aqui e operar tudo que é mulher. Eu já tive que matar um homem a
pauladas em legítima defesa. Imagine um cara relar numa filha minha. Fui
estuprada pela primeira vez aos 12 anos na frente da minha mãe.
Depois do abuso, Daise saiu de casa e arrumou o primeiro marido, pai
dos dois filhos que ela já tem. O companheiro atual usa crack e ela
afirma que consome apenas cocaína, lança perfume e maconha. Nessa
rotina, ela não consegue acompanhar o pré-natal.
— Minha família não sabe meu paradeiro. A essa hora podem achar que eu
estou até morta. Eu tenho medo de perder os filhos que estão na minha
barriga, mas eles ainda são anjos. Pelo menos vão direto para o céu. Eu
tenho muito sangramento e convulsão.
Daise conta que já viveu de tudo nas ruas, que já precisou matar para defender a vida e não quer isso para os filhos que espera .
Uma pesquisa realizada pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) indica que
20% das pessoas que frequentam as regiões de cracolândias no País são
mulheres. O estudo ouviu 32.359 pessoas, sendo 24.977 em domicílios e
7.381 nos próprios locais de consumo de droga. Entre as mulheres, 8,17%
têm aids. No momento da entrevista, 10% delas afirmaram estar grávidas.
Nem 5% realizam o pré-natal de forma adequada (pelo menos sete consultas
antes do parto).
Segundo um dos coordenadores do trabalho, o médico Francisco Inácio
Bastos, ele nunca viu uma população feminina tão maltratada e magoada. A
busca por um tratamento na gravidez acaba sendo a porta de entrada
dessas mulheres no sistema de saúde, por isso ele defende que os
governos deveriam fazer um plano integrado para receber essas mulheres
na gestação e já tratar o problema das drogas.
Gravidez limpa
Carolina Regina, de 22 anos, tem tanto medo de não criar o filho que
espera — se o Conselho Tutelar retirar a criança dela — que parou com as
drogas. O filho que teve aos 18 anos não vive com ela. A primeira
gravidez foi acompanhada do uso de drogas e ela lembra o quanto passava
mal e como ficou feliz em saber que a criança nasceu saudável.
Ela diz que, da outra vez, a barriga ficou enorme e seu corpo inchou muito. Agora, aos oito meses, a gestação está discreta.
— Eu até perguntei para a médica se estava tudo bem porque minha barriga está tão pequena. Não vejo a hora.
Os pais de Carolina morreram de Aids e ela vive nas ruas desde os nove
anos com o irmão, quando passou a usar drogas. Ela diz que agora
consegue se manter longe pelo bem do filho. O marido ainda usa pedra,
mas tenta comprar coisas para o filho que vai nascer.
O casal trabalha no programa da prefeitura “De braços abertos”. Além de
uma vaga em uma pensão, direito a vale comida, eles ganham R$ 105 cada
um, às sextas-feiras, para varrer ruas da cidade. Carolina sonha em
guardar parte desse dinheiro e, mais para frente, alugar uma casa para
viver apenas com o marido e os filhos.
— Eu quero um dia criar meu outro filho também. Hoje, se estou próxima
de quem está usando [crack], saio de perto, vou ouvir música, fazer
alguma coisa. Estou determinada e não vou me influenciar por mais nada.
A jovem é sorridente, mas convive com a tristeza de saber que o único irmão, de 18 anos, vive na Cracolândia e se entregou ao crack.
A jovem é sorridente, mas convive com a tristeza de saber que o único irmão, de 18 anos, vive na Cracolândia e se entregou ao crack.
— Perdemos os nossos pais tão cedo e fomos pra rua. Eu queria que meu
irmão tivesse uma família assim como eu tenho agora. Ele ia entender que
a vida pode ter um novo sentido.
De braços abertos
A Prefeitura implementou o programa após um acordo no início do ano com
moradores de 147 barracas que ocupavam as ruas Helvetia e Dino Bueno.
Atualmente, 513 participantes vivem em sete hotéis no entorno, ganham
três refeições diárias, e R$ 15 por dia de trabalho. Uma balanço
divulgado em outubro pelo programa indica que o consumo de droga foi
reduzido em até 50%, em média, entre os usuários de crack que trabalham.
Do total de beneficiários cadastrados, 307 são homens, 169 são mulheres
e 37, crianças. Ainda de acordo com a prefeitura, 23 usuários já
trabalham fora do programa e 49 atuam nas frentes de trabalho em órgãos
municipais. Outros 260 seguem no serviço de varrição de ruas e 25
participantes estão no projeto Fábrica Verde, um curso de capacitação
voltado à área de jardinagem.
http://noticias.r7.com/sao-paulo/gravidas-na-cracolandia-jovens-contam-como-vivem-entre-os-filhos-e-a-pedra-10112014
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