Imagine que sua filha vai se casar. Engravidou do
primeiro namorado, um rapaz mais velho que ela conheceu na vizinhança.
Vai deixar de estudar por causa da gravidez e do marido. O jovem casal
vai morar na casa dos pais dele. No entanto, ela só tem 12 anos.
O casamento de crianças e adolescentes brasileiros, como na situação
narrada acima, é o tema da pesquisa , realizada pelo Instituto Promundo,
ONG que desde 1997 estuda questões de gênero.
De acordo com o Censo 2010, pelo menos 88 mil meninos e meninas com idades de 10 a 14 anos estavam casados em todo o Brasil. Na faixa etária de 15 a 17 anos, são 567 mil.
A partir dos dados do Censo, a equipe de pesquisadores - financiada
pela Fundação Ford, com apoio da Plan International e da Universidade
Federal do Pará (UFPA) - foi ao Pará e ao Maranhão, Estados onde o
fenômeno do casamento infanto-juvenil é mais comum, e mergulhou no
universo das adolescentes que tão cedo têm que se transformar em
adultas.
Numa pesquisa qualitativa, foram entrevistadas 60 pessoas, entre
garotas de 12 a 18 anos, seus maridos (todos com mais de 20 anos), seus
parentes e funcionários da rede de proteção à infância e adolescência no
Brasil.
A idade média das jovens entrevistadas foi de 15 anos; seus maridos são, em média, nove anos mais velhos.
Mas os pesquisadores descobriram que, no Brasil, o casamento de
crianças e adolescentes é bem diferente dos arranjos ritualísticos
existentes em países africanos e asiáticos, com jovens noivas prometidas
pelas famílias em casamentos arranjados pelos parentes ou até mesmo
forçados.
O que acontece no Brasil, por outro lado, é um fenômeno marcado pela
informalidade, pela pobreza e pela repressão da sexualidade e da vontade
femininas.
Normalmente os casamentos de jovens são informais (sem registro em
cartório) e considerados consensuais, ou seja, de livre e espontânea
vontade.
Naturalização
Entre os motivos para os casamentos, a coordenadora do levantamento,
Alice Taylor, pesquisadora do Instituto Promundo, destaca a falta de
perspectiva das jovens e o desejo de deixar a casa dos pais como forma
de encontrar uma vida melhor.
Muitas fogem de abusos, escapam de ter de se prostituir e convivem de
perto com a miséria e o uso de drogas. As entrevistas das jovens,
transcritas no relatório final da pesquisa sob condição de anonimato,
mostram um pouco do que elas enfrentam, como esta que diz ter saído de
casa por causa do padrasto, que a maltratava.
"Porque eu tava entrando na minha adolescência, eu queria sair, eu
queria curtir, queria andar (…). Eu me relacionei com ele, namorei com
ele três meses, ele me convidou pra morar na casa dele, aí eu fui pra
casa dele. Não gostava muito dele, eu só fui mesmo pelo fato de o meu
padrasto (me maltratar), aí na convivência nossa ele (o marido) me fez
aprender a gostar dele, e hoje eu sou louca por ele", conta uma das
garotas.
A jovem casou-se aos 12 anos, grávida, com um homem de 19. No
relatório, os pesquisadores afirmam que ela relatou ser abusada pelo
padrasto, mas não fica claro o tipo de abuso.
Também em Belém, outra jovem entrevistada, que casou grávida aos 15
anos, diz que a mãe "achou por bem a gente se casar logo, pra não haver
esses falatórios que ia haver realmente". O rapaz era cinco anos mais
velho.
Em São Luís, uma das meninas mais novas entrevistadas relata que se
casou aos 13 com um homem de 36 anos. E mostra a falta de perspectiva
como fator fundamental para a decisão, ao dizer o que poderia acontecer
caso não estivesse casada: "Acho que eu estaria quase no mesmo caminho
que a minha irmã, que a minha irmã tá quase no caminho da prostituição".
A coordenadora da pesquisa de campo em Belém, Maria Lúcia Chaves Lima,
professora da UFPA, disse que as entrevistadas falaram de modo natural
sobre suas uniões conjugais, mesmo sendo tão precoces.
"É uma realidade naturalizada e pouco problematizada na nossa região", afirma.
Segundo Lima, a gravidez ainda é a grande motivadora do casamento na
adolescência, e a união é vista como uma forma de controlar a
sexualidade das meninas.
"A lógica é: 'melhor ser de só um do que de vários'. O casamento também
aparece como forma de escapar de uma vida de limitações, seja econômica
ou de liberdade", diz.
Legislação atrasada
O casamento infantil, reconhecido internacionalmente como uma violação
aos direitos humanos, é definido pela Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos da Criança (CRC) – que o Brasil assinou e ratificou em 1990 –
como uma união envolvendo pelo menos um cônjuge abaixo dos 18 anos.
No Brasil, acontece mais frequentemente a partir dos 12 anos, o que faz
com que os pesquisadores definam o fenômeno como casamento na infância e
na adolescência.
Segundo a pesquisa, estimativa do Unicef com dados de 2011 aponta que o
Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números absolutos de mulheres
casadas antes dos 15 anos: seriam 877 mil mulheres com idades entre 20 e
24 anos que disseram ter se casado antes dos 15 anos.
Mas essa estimativa exclui, por falta de dados, países como China,
Bahrein, Irã, Israel, Kuait, Líbia, Omã, Catar, Arábia Saudita, Tunísia e
os Emirados Árabes Unidos, entre outros.
De qualquer modo, os pesquisadores alertam para a falta de discussão
sobre o tema no Brasil e a necessidade de mudanças na legislação. No
Brasil, a idade legal para o casamento é estabelecida como 18 anos para
homens e mulheres, com várias exceções listadas no Código Civil.
A primeira exceção — compartilhada por quase todos os países do mundo —
permite o casamento com o consentimento de ambos os pais (ou com a
autorização dos representantes legais) a partir dos 16 anos.
Outra exceção é que a menor pode se casar antes dos 16 anos em caso de
gravidez. E a última, prevista no Código Civil, é que o casamento antes
dos 16 anos também é permitido a fim de evitar a "imposição de pena
criminal" em casos de estupro.
Na prática, essa exceção permite que um estuprador evite a punição ao se casar com a vítima.
Sonhos que envelhecem cedo
De acordo com as entrevistas e a análise dos pesquisadores, o que
acontece, na maioria das vezes, é que, em vez de serem controladas pelos
pais, as garotas passam a ser controladas pelos maridos. Qualquer sonho
de escola ou trabalho envelhece cedo, na rotina de criar os filhos e se
adequar às exigências do cônjuge.
O título da pesquisa, , vem de uma frase de um dos maridos
entrevistados, de 19 anos, afirmando que a jovem mulher, de 14 anos,
grávida à época do casamento, tinha de seguir sua orientação.
"Ela vai no sonho que eu pretendo pra mim, né? Ela vai seguindo… Acho
que é uma desvantagem de a pessoa não ser bem estruturada, né?
Geralmente cada um leva as suas escolhas, né? Mas por ela ser mais nova e
eu ser mais velho, tipo assim, ela vai no meu barco", resume ele.
Casadas, as jovens muitas vezes enfraquecem seus laços de amizade, sua
vida social e passam a se dedicar apenas ao marido e aos filhos. São
alvo do controle e do ciúme dos maridos, e algumas relataram casos de
violência.
"Queremos alertar que essa situação não é apenas restrita aos rincões
do país. As entrevistas foram feitas em Belém e São Luís, o que mostra
que é uma questão que ocorre nos centros urbanos", afirma Alice Taylor.
http://noticias.terra.com.br/brasil/pobreza-e-abusos-estimulam-casamentos-infantis-no-brasil,f2b725c87347109fa5bebd48d140c702suofRCRD.html
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