quarta-feira, 22 de abril de 2015

Todos os anos, três milhões de meninas sofrem mutilação genital no mundo

Boche, de 10 anos, teve pedaço do tornozelo arrancado pelo pai na Tanzânia por se recusar a se submeter à mutilação genital Boche, de 10 anos, teve pedaço do tornozelo arrancado pelo pai na Tanzânia por se recusar a se submeter à mutilação genital

Apesar de condenada pela ONU, países da África e no Oriente Médio mantêm a prática; a mutilação consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina 

A gaze ao redor do tornozelo esquerdo da pequena Boche, de 10 anos, esconde o que seu olhar triste não consegue disfarçar. Após se recusar a ter as partes genitais mutiladas, a criança que mora em uma aldeia do norte da Tanzânia teve o pedaço da pele da perna arrancada à faca pelo próprio pai.

Boche faz parte do contingente de milhões de meninas e mulheres que vivem em países da África e do Oriente Médio onde persiste a prática da mutilação genital feminina, uma tradição de ao menos cinco mil anos de história que consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina. Em alguns locais o corte ainda é feito à navalha.

O procedimento teria função sanitária – a mulher se tornaria mais limpa após o ato – e também atenderia a questões culturiais: o clitóris é visto por sociedades patriarcais como a falsa representação do pênis e, portanto, competiria com a virilidade masculina. Na maioria dos casos, a mutilação da vagina veta à mulher o direito ao prazer sexual.

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, a mutilação genital é realizada em cerca de 3 milhões de meninas e mulheres todos os anos e se concentra em 29 países entre o continente africano e o Oriente Médio. 

Até agora, mais de 130 milhões de meninas e mulheres já foram submetidas ao procedimento e, se essa tendência for mantida, outras 30 milhões poderão ser mutiladas nos próximos dez anos. Somado ao impacto do crescimento populacional, o índice pode atingir 63 milhões até 2050, de acordo com o Unicef.
"De todas as histórias que eu já presenciei, a de Boche é a que mais me comoveu. Ela é só uma criança...", diz ao iG Julian Marcus, presidente da Tanzânia Development Trust (TDT), ONG que acolhe vítimas da mutilação e ajuda a erradicar a cultura no país e para onde Boche foi encaminhada.

Entre os países que praticam a circuncisão feminina, a Somália tem o maior número de casos: 98% das mulheres entre 15 e 49 anos já tiveram a vagina mutilada, segundo o estudo "Female Genital Mutilation/Cutting: A statistical overview and exploration of the dynamics of change", do Unicef, divulgado em 2013. A Guiné tem o segundo maior índice, 96%. Djibouti e Egito têm, respectivamente, 93% e 91% da população feminina mutilada. Em Eritreia e no Mali, o número chega a 89%. Em Serra Leoa e no Sudão, a prevalência é de 88%.

Formas de mutilação
Em dezembro de 2012, uma resolução da ONU (67/146) condenou a prática. Para dribá-la, no entanto, alguns países têm medicalizado o procedimento. No Egito, por exemplo, o corte no clitóris é feito superficialmente por profissionais de saúde treinados, o que reduz o risco de infecções e morte da paciente.
Mas esse não parece ser o procedimento padrão em todos os países listados pelo Unicef. Théo Lermer, ginecologista, sexólogo e colaborador do ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas (HC), explica que tribos ainda realizam a mutilação genital extrema, onde a mulher tem o clitóris e os pequenos lábios arrancados por meio de facões e navalhas sem o menor nível de profilaxia. 

Waris Dirie durante pronunciamento sobre mutilação genital feminina na ONU (Arquivo). Foto: Reprodução/FacebookWaris Dirie durante pronunciamento sobre mutilação genital feminina na ONU (Arquivo). Foto: Reprodução/Facebook

"Nesses casos, a vagina é costurada e se torna, basicamente, os orifícios para urinar e menstruar. Depois disso, durante a relação sexual, essa mulher sente bastante dor e, quando engravida, corre sério risco de morrer. Se ambos sobreviverem, é provável que a mulher sofra com fístulas", afirma. 



Para Melanie Sharpe, assessora de imprensa do Unicef em Nova York, "acabar com a mutilação genital não é uma questão de simplesmente impor valores. O fim da prática é uma ação que inclui governos nacionais, líderes religiosos locais, os meios de comunicação e o mais importante, comunidades e famílias". 

Questão de cultura 
A origem da mutilação genital feminina é milenar, mas incerta. Segundo Olga Regina Zigelli Garcia, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), há estudiosos que apontam para a época da venda de escravas no mercado árabe – elas seriam circuncidadas antes do negócio. Outros falam da invasão do Vale do Nilo por tribos nômades que realizavam o procedimento e o espalharam pelo Egito e países vizinhos por difusão nos anos 3.100 a.C. 

Para Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da Unesp, Universidade Estadual Paulista, como a mutilação genital feminina tem uma representatividade grande nas sociedades africanas, sua permanência deve ser discutida e, em muitos casos, respeitada.

"Essa é uma cultura que passa de geração para geração. Para nós, por exemplo, é normal a mulher fazer cirurgia de reconstituição de hímen para ficar virgem novamente. Se a circuncisão não for total e a mulher quiser manter a tradição, não acho que deveria ser erradicada", pondera.

Já a socióloga Olga considera a mutilação genital uma violação dos direitos humanos e herança das sociedades patriarcais e, por isso, não deve ser mantido apenas por seu "questionável valor cultural".

"A prática, além de violar a dignidade humana, também viola os direitos da criança, já que meninas entre quatro e oito anos também são violadas. Não podemos legitimar crueldades e desigualdades com a desculpa da tradição", afirma.

Foi para apresentar a filha à sociedade que o pai da tanzaniana Verônica, de 14 anos, quis obrigá-la a se submeter ao ritual. Durante seu relato para a ONG que a acolheu, a jovem afirmou ter sido informada de que "deveria ser mutilada porque tinha terminado a escola primária e já tinha idade para casar."
Mapa dos países com maior número de mulheres e crianças submetidas à mutilação genital na África
Reprodução/Unicef
Mapa dos países com maior número de mulheres e crianças submetidas à mutilação genital na África
Como se recusou, a adolescente passou a ser espancada sistematicamente pelo pai. "Meu pai dizia que com a mutilação eu teria um dote maior. Seriam cinco vacas que meu pai utilizaria para vender e mandar meu irmão para uma escola particular", disse ela em depoimento à BBC. Verônica fugiu de casa e buscou refúgio na Tanzânia Development Trust (TDT).

O Fundo de População das Nações Unidas, que atua em 22 países do continente, afirma que cerca de oito mil comunidades na África concordaram em abandonar a mutilação genital feminina. De acordo com Melanie Sharpe, foi criado em 2008 um programa conjunto entre o Unicef e o UNFPA para acelerar a mudança em 15 países da África Ocidental, Oriental e do Norte.

Cenário econômico e social
A baixa escolaridade e os níveis expressivos de pobreza ajudam a difundir e manter a prática no continente africano, segundo a ONU. O continente, cuja população geral ultrapassa os 889 milhões de habitantes, tem algumas das áreas com os piores níveis de saneamento básico do mundo.

Na África Subsaariana – que abrange países como Tanzânia, Somália, entre outros – o porcentual de saneamento básico não passa de 30%. Metade da população vive com menos de um dólar por dia e até dois terços dos países estão entre os que têm os menores IDHs.

É nessa região que há também a maior prevalência de favelas urbanas do planeta: elas devem abrigar 400 milhões de pessoas em 2020. O rápido crescimento urbano e a falta de planejamento têm aumentado os assentamentos impróprios e, por consequência, o número de catástrofes recorrentes de desabamentos, entre outros.


 http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-04-22/todos-os-anos-tres-milhoes-de-meninas-sofrem-mutilacao-genital-no-mundo.html

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