Há
um aspecto simbólico (aliás muitos) na condenação de uma agente de
trânsito pela ousadia de parar um juiz numa blitz no Rio de Janeiro*. O
magistrado, como se sabe, infringia a lei ao dirigir uma Land Rover sem
placa e sem documentação. A funcionária que o autuou foi condenada por
lembrar o óbvio ao doutor: juiz não é Deus. Em outras palavras, a lei
vale para todos.
A primeira lição do episódio é que, por essas
bandas, o óbvio nunca é assim tão óbvio. Tanto não é óbvio que ofende,
gera processo, pune. Ao menos Josef K., personagem de Franz Kafka em O Processo,
desconhecia os motivos de sua perseguição. No caso da profissional, as
razões vinham em cores gritantes: no Brasil há cidadãos de primeira e de
segunda categoria, e só estes últimos estão, ou deveriam estar,
sujeitos à lei. A sentença, se não conferia ao magistrado uma entidade
divina, ao menos o garantia na primeira classe.
A condenação não
poderia ser mais revoltante – e, no entanto, não poderia fazer mais
sentido. Num país onde parte dos magistrados aposentados segue
desfrutando de apartamentos funcionais, mantém sociedade em institutos
de ensino, aceita patrocínios privados para eventos de classe, solta banqueiro corrupto e condena o policial que o investigou, o
juiz da carteirada apenas agiu no conforto de quem sabe onde pisa. A
carteirada, de toda forma, diz muito sobre as fragilidade e contradições
de um dos pilares dos Três Poderes, embora, com a repercussão do caso,
tenha sido alvo de críticas dos colegas e do próprio Conselho Nacional
de Justiça.
Fato é que a negação de um servidor público em agir,
na vida pública e privada, como um servidor revela, em si, o desprezo
pela ordem semântica da própria função. Reitero: desprezo não é
ignorância. Esse desprezo coloca em xeque o próprio funcionamento da
Justiça em caixa alta: ela nem sempre está a serviço da justiça em caixa
baixa.
A repercussão da carteirada nas redes sociais deixou
claro, no entanto, que essa construção da barreira simbólica entre
cidadãos de primeira e segunda categorias já não é aceita como antes. A
mudança das relações de poder, mais horizontais que verticais, tende a
incutir o elemento da petulância, no ótimo sentido, a esse tipo de
abordagem. Sai o “sim senhor” dos subordinados e entra o “quem você
pensa que é?” dos indivíduos conectados e cientes dos próprios
direitos. Essa é a boa notícia.
A má é que essa transição só será
completa quando compreendermos uma aparente contradição: o mundo que
caminha para estabelecer relações horizontais entre professores e
alunos, líderes religiosos e fieis, pais e filhos, representantes e
representados é o mesmo que estimula a obsessão pelo camarote. Explico.
Há alguns anos, conforme contei numa crônica antiga.
assisti incrédulo à cerimônia de colação de grau de uns formandos em
odontologia em uma tradicional universidade pública. Lá o discurso de
professores e coordenadores era uníssono: “comemorem, nobres formandos,
vocês são uma casta privilegiada: poucos conseguem entrar em nossa
faculdade, e pouquíssimos conseguem sair dela formados. Vocês
representam 0,00000001% da população que tiveram esse privilégio”.
Num
país onde ter dente ou não é razão suficiente para colocar indivíduos
em primeiras, segundas e terceiras categorias, nada poderia soar tão
anacrônico, mas aquele discurso não saiu do nada: o discurso do
vencedor, por aqui, sempre esteve associado ao privilégio, e quase nunca
às missões inglórias – entre as quais a possibilidade de usar o canudo
para minimizar os efeitos de um país devastado em sua origem, das
capitanias hereditárias à escravidão, passando pelos açoites,
regulamentados ou não, das relações humanas. Essa perversidade nos legou
um país de banguelas e aquela formatura era a graça da desgraça do
banguela de que fala a música de Zeca Baleiro.
A mesma lógica
(“não sou qualquer um”) levou, recentemente, uma professora
universitária a fazer galhofa, em público, sobre um passageiro mal
vestido no aeroporto. E levou uma jovem jornalista a se queixar, também
em público, da segurança da balada por obrigá-la a pegar fila mesmo após
ser avisada de que era jornalista, e não uma simples mortal. A
carteirada, portanto, é quase um patrimônio. É mais grave, obviamente,
quando oferecida por um servidor público, mas a origem da serventia é
uma base tentacular de um país onde privilégios são vistos
como direitos, e direitos são vistos como favores, como definiu
brilhantemente o jornalista Luiz Fernando Viana em uma coluna recente na
Folha de S.Paulo.
As
sucatas dessa transição podem ser encontradas na separação entre o
elevador de serviço e o elevador “social”. Ou no uso de ascensoristas
para levar o patrão direto ao andar desejado sem ser incomodado. Ou nos
slogans de propagandas para atrair os clientes prime. No Brasil
o status é calculado pelo tamanho da fila: uns simplesmente adquirem,
por dinheiro ou mérito próprio, o direito de dispensá-la. Ainda que esta
fila seja a própria lei.
https://br.noticias.yahoo.com/blogs/matheus-pichonelli/o-juiz-a-carteirada-e-o-camarote-125637682.html
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