sábado, 11 de maio de 2013

Em recuperação, mendigo gato reencontra fotógrafa que mudou seu destino

Internado há sete meses, ele já pode receber a visita da família, que acompanha aliviada a evolução do tratamento.

Michelle Fernandes sonha ser cantora gospel. Rafael Nunes já foi modelo fotográfico. Os dois não se conhecem, mas têm muitos pontos em comum.

  Confira o antes e depois do mendigo gato
 

Internado há sete meses, ele já pode receber a visita da família, que acompanha aliviada a evolução do tratamento.
Jovens, boa aparência, uma vida inteira pela frente. Quem poderia imaginar: Michelle e Rafael viraram mendigos.

“Minha casa é a rua. Infelizmente”, conta Michelle Fernandes.
“Passava frio, os pés gelados. Às vezes chovia, ventava” lembra Rafael Nunes.

Michelle vive nas ruas de Curitiba há seis anos. Rafael ficou nesta situação um ano e cinco dias. Eles se juntaram a uma população de anônimos que vagam pelas cidades sem destino.

“Eu tive dificuldade na família, de conviver com a família. Foi muito difícil, né? Eu tinha um namorado e ele usava droga. E eu usei junto com ele”, conta Michelle.

“Eu comecei a vender as minhas roupas e consumir drogas”, revela Rafael.

A equipe do Globo Repórter encontrou Rafael em uma clínica de recuperação para dependentes de álcool e drogas em Araçoiaba da Serra, a 120 quilômetros de São Paulo.

Internado há sete meses, ele já pode receber a visita da família, que acompanha aliviada a evolução do tratamento. Seu José, o pai dele, se lembra das noites em claro quando o filho vivia nas ruas.

“Eu cheguei a mudar para um quarto sozinho. Para escutar televisão de noite. E ficar sentado na cama, um pouco chorando, um pouco rezando”, conta o aposentado José Nunes.

A mãe, a enfermeira Edite Nunes, montou uma rede de informantes pela cidade na tentativa de localizar e levar o filho de volta para casa.

“Às vezes, alguém dizia: ‘eu vi o Rafael em Campo Raso’. Aí, eu pegava o ônibus e ia para Curitiba. Chegava lá, eu rodava, rodava. Então, eu saía para esquerda, com certeza ele ia para direita”, lembra dona Edite.

“Eu tinha medo dele aparecer em casa um dia fora de si, drogado e machucar o pai e a mãe e machucar as crianças. Eu sempre tive medo. Ao mesmo tempo, a gente quer resgatar e a gente tem medo”, desabafa a irmã de Rafael, Rubiana Nunes.

Mas, em outubro de 2012, a vida de Rafael cruzou com a de Indy Zanardo. A fotógrafa gaúcha visitava parentes em Curitiba. E, entre uma foto e outra, apareceu Rafael, maltrapilho e delirante.

“Ela estava tirando foto do familiar dela e eu acho que eu passei no meio, ofuscando a câmera dela”, lembra Rafael.

“Ele falou assim ‘tira uma foto minha’. Ele falou ‘você vai pôr na rádio para eu ficar famoso’”, conta Indy.

“Brinquei com ela, balancei assim, gesticulei. E ela tirou a foto, né?”, diz Rafael.
“Eu tirei a foto e ele saiu correndo. Eu não tive tempo de conversar com ele. Ou de olhar. Na verdade, eu nem vi ele. Eu fui ver mesmo depois que eu entrei no ônibus, Olhei para minha câmera e vi a foto ali. Na verdade, na hora em que eu olhei na foto, para mim, não era a mesma pessoa que estava ali na minha frente. Que eu achei, assim, muito bonito”, conta Indy.

De volta ao Rio Grande do Sul e impressionada com a beleza do mendigo, Indy decidiu publicar a foto na internet. Foi um sucesso instantâneo nas redes sociais: em poucas horas, milhares de acessos.
Quem seria aquele jovem? Um mendigo com pinta de modelo? Ou um modelo fazendo pose de mendigo?

Em poucas horas, a notícia do mendigo gato chegou à família de Rafael.

“Eu pensei: ‘meu deus, a minha família vai saber que eu tenho um filho na rua’, porque ninguém sabia, a minha mãe tem 90 anos”, conta a mãe de Rafael.

Mas, o que poderia ter sido uma notícia ruim, acabou apontando um novo caminho para Rafael. A direção da clínica onde ele está internado soube da história e ofereceu tratamento ao ex-modelo.
Sem nunca ter encontrado a família de Rafael, Indy acabou transformando a vida de todos.

“Se não fosse ela, nós estávamos com ele perdido. A gente sempre tinha uma esperança, nós vamos continuar, mas ele estava além do fundo do poço”, desabafa Edite.

“Só tenho a agradecê-la realmente por aquele instante. Aquele breve instante que ela tirou a foto que ela postou na internet e mudou a minha vida”, conta Rafael.
E então, uma surpresa: o encontro com Indy.

“Obrigado. Você recuperou meu filho, minha família”, diz a mãe de Rafael, enquanto abraça Indy.
“Que bom te ver assim”, diz Indy.

“Valeu. Obrigado mesmo”, agradece Rafael.
“Muito obrigado pelo que você fez. Você faz parte da nossa família”, diz o pai de Rafael.
“É assim que eu me sinto”, revela Indy.

Foi um encontro emocionado e caloroso, como o de velhos amigos que precisam pôr a conversa em dia.

Hoje, Rafael está lúcido, tranquilo. Mas ainda é preciso cautela.

“Ele ainda tem que passar por muitas etapas, ele vai passar por dificuldades, por frustrações, ele tem que saber lidar com a realidade dele”, explica Ana Leda Bella, psicóloga.

Para Rafael e para a família dele, a esperança de recuperação nunca esteve tão perto.
“Que coisa mais linda te ver assim”, se alegra Indy.

“Mudei realmente, né?”, pergunta Rafael.
“Com certeza. Deus te deu uma chance. Mais uma chance. Tem que agarrar com força e coragem”, diz Indy.

Michelle também se diz livre das drogas, mas ainda vive nas ruas. Sem emprego e sem apoio da família, ela tenta se reerguer sozinha. Quando cai a noite, se abriga no albergue da Fundação de Ação Social de Curitiba, conhecida como FAS.

Todas as noites, 300 pessoas são atendidas lá, entre homens e mulheres. É a lotação máxima. Esgotadas as vagas, ninguém mais entra. Histórias que se misturam, vivências dramáticas de pessoas que não tem uma casa pra voltar, mas que lá pelo menos por algumas horas, encontram um pouco de conforto.

Todos passam por uma revista, têm direito a banho, comida quentinha, uma cama pra dormir. Só em 2012, quase 3,5 mil pessoas que viviam nas ruas de Curitiba passaram por lá. A maioria é formada por homens que se perderam nas drogas.

“A partir do crack, as pessoas foram mais pra rua. Ou porque suas famílias não admitem o uso em casa e porque também é mais fácil conseguir a droga na rua”, afirma Márcia Fruet, presidente da Fundação Ação Social.

Um homem, que não quis mostrar o rosto, luta para se recuperar. Ele tem 40 anos e há um ano e meio está afastado da família.

“O morador de rua não é um bandido. Ele não é, vamos dizer assim, como as pessoas taxam, vagabundo, não. Às vezes, passou por uma situação, uma dependência, que levou a ele chegar ser morador de rua. Eu já tive dificuldades em entrevistas de emprego quando eu disse que morava na FAS. Então, já não tinha emprego”, conta o homem.

No albergue, funciona uma central para resgate de moradores de rua. Sempre que chega um comunicado, as equipes são acionadas. É uma tarefa que avança noite adentro.

A equipe do resgate social encontra uma mulher deitada no chão, completamente bêbada.
Na capital mais gelada do país, o álcool também é usado pelos moradores de rua para espantar o frio das madrugadas. No inverno, são comuns as notícias de andarilhos encontrados mortos nas calçadas de Curitiba.

Quando amanhece, os que passaram a noite no abrigo são obrigados a sair. Para Michelle, que vive no abrigo há seis anos, é hora de ir para a escola e tentar uma nova chance.

“Agora, estou estudando. Estou querendo me formar agora pra fazer gastronomia”, revela Michelle.
Nas aulas, é aluna dedicada, caprichosa. Sonha com uma casa e poder trazer para perto os dois filhos, que não vivem mais com ela.

Globo repórter: De quanto em quanto tempo você consegue ver os filhos?
Michelle: De dois em dois meses. Quando eu posso ver antes, eu vejo de 15 a 20 dias, mas sempre vou dar uma olhadinha neles.

E lá vai ela, no trânsito, circulando entre carros. Pedindo esmolas? Não, nada disso: trabalhando!
Enquanto não tem um emprego fixo, a Michelle trabalha nos fins de semana. Vende jornais nos sinais de transito. R$ 70 é o pouco que ela consegue ganhar com o trabalho avulso.

Apesar das privações, Michelle encara a vida com otimismo. Está sempre com um sorriso no rosto. Como tantos outros que fizeram das ruas os cômodos da própria casa, ela sonha com o dia em que as calçadas voltem a ser apenas caminhos de ir e vir.

 http://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2013/05/em-recuperacao-mendigo-gato-reencontra-fotografa-que-mudou-seu-destino.html

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