"Passei os quatro primeiros anos de governo como vice
decorativo. A Senhora sabe disso. Perdi todo protagonismo político que
tivera no passado e que poderia ter sido usado pelo governo. Só era
chamado para resolver as votações do PMDB e as crises políticas."
No trecho acima, parte de sua carta enviada à presidente Dilma Rousseff
poucos dias após o processo de impeachment ser deflagrado no Congresso,
o vice Michel Temer demonstrou desconforto com seu papel (ou com a
falta de um) no primeiro mandato da petista.
O ato foi interpretado por muitos como um sinal verde para que os
integrantes de seu partido, o PMDB, votem a favor do afastamento da
presidente – o que consequentemente o levaria ao poder. Dias depois,
ambos anunciaram que manteriam uma "relação institucional".
Mas, afinal, a rotina de um "vice decorativo", como definiu Temer, difere muito da realidade esperada para o cargo?
Segundo a Constituição, o vice tem como função substituir o presidente
em caso de viagem, doença e situações extremas como morte e impeachment,
além de ajudar o titular do cargo "sempre que por ele convocado para
missões especiais" – o peemedebista, por exemplo, preside fóruns
internacionais de discussões com os governos da Rússia e da China.
"Existe a ideia de que o vice é um conselheiro importante do
presidente. Agora, o quanto de fato isso acontece, vai depender de
governo para governo", afirma Thomaz Pereira, professor da FGV Direito
Rio.
Na história recente, as duplas Fernando Henrique Cardoso/Marco Maciel e
Luiz Inácio Lula da Silva/José Alencar são exemplos de casos em que
presidente e vice mantiveram uma relação próxima, lembram analistas
ouvidos pela BBC Brasil.
O último caso de rompimento oficial, não por acaso, ocorreu entre
Itamar Franco e Fernando Collor de Mello, que mais tarde foi alvo de um
processo de impeachment e teve de deixar o cargo.
O fator passaporte
Sendo a substituição do presidente a função principal de um vice,
Michel Temer foi, dos três ocupantes mais recentes do cargo, o que menos
a exerceu, recorda o cientista político David Verge Fleischer,
professor da UnB (Universidade de Brasília).
mostrou que, em seu primeiro mandato, Dilma Rousseff passou 144 dias em
viagens internacionais, número bem inferior aos de Lula (216 no
primeiro mandato e 269 no segundo) e pouco menor que os de FHC (165 e
159).
Além de ser uma presidente menos ausente do país, a petista mantém com
Temer uma relação bastante diferente da cultivada por seus antecessores
com seus respectivos vices, afirma o professor.
"Marco Maciel foi fiel, leal. E ajudou muito o FHC a governar.
Informalmente, fazia muito a articulação política", diz. "Lula
aproveitou bem o José Alencar, com quem sabia entrosar. Ele desempenhou
funções importantes."
E Dilma? "Com ela, o PT desprezou totalmente o PMDB, não chamou para
conversar, integrar o governo. O PT queria tomar conta de tudo", avalia
Fleischer, que vê nessa decisão petista – e na personalidade
centralizadora da presidente – um complicador da relação com o vice.
Quando o vice brilha
Se é fato que as menções à palavra impeachment foram aumentando nos
jornais, revistas e sites brasileiros conforme a crise política foi
avançando neste ano, é justo dizer que o mesmo ocorreu com o nome de
Michel Temer, herdeiro do cargo caso Dilma seja afastada pelo Congresso.
Porém, como lembra Thomaz Pereira, da FGV, a figura do vice também é
muito importante em outros momentos – entre eles, o processo eleitoral,
fase em que o então candidato a presidente e seu parceiro de chapa selam
o "casamento".
Em 2002, a escolha de Alencar - empresário do setor têxtil - como vice
serviu para sinalizar ao mercado que Lula seria mais moderado nas
questões econômicas, recordam os especialistas.
"Se a função dele era essa, foi bem-sucedida. O governo Lula não teve
problemas, de maneira geral, na relação com o empresariado", afirma
Pereira.
Em meio à coligação gigantesca que o líder petista articulou para
eleger Dilma sua sucessora, Temer simbolizava a pacificação do PMDB,
partido que preside e que tradicionalmente tem uma das maiores bancadas
no Congresso.
Essa aliança garantiria a ela, na teoria, certa tranquilidade na
relação com o Legislativo. Tranquilidade que, paulatinamente, foi dando
lugar a um ambiente de animosidade crescente – e que levou ao
protagonismo o desafeto Eduardo Cunha, peemedebista que se transformou
no maior algoz do Planalto na tramitação de projetos na Câmara e, no
ápice da crise, abriu o processo de impeachment.
"Se a escolha do vice-presidente foi para solidificar essa aliança, por
algum motivo aparentemente ficou faltando alguma coisa", avalia
Pereira.
De "vice decorativo" no primeiro mandato, como ele mesmo definiu em sua
já histórica e polêmica carta, Temer foi acionado para tentar melhorar
esse clima com o Congresso neste ano.
Alçado a articulador, assumiu a função antes desempenhada pelo ministro
de Relações Institucionais e se saiu bem na tarefa, na opinião de
Fleischer.
"O problema é que o (Aloizio) Mercadante não cumpriu com as promessas
que Temer fez no Congresso", afirmou o cientista político, em referência
ao então ministro-chefe da Casa Civil, hoje titular da Educação.
Segundo relatos na imprensa em meados deste ano, parlamentares culpavam
Mercadante pela demora na liberação de verbas para emendas
parlamentares e cargos. A Casa Civil, por sua vez, afirmava que a conta
era da falta de entendimento entre os partidos.
Temer acabou deixando a função, poucos meses após assumi-la.
Vice com função é vice feliz?
Durante boa parte do primeiro governo Lula, José Alencar acumulou a
Vice-Presidência com o Ministério da Defesa, sinal claro de prestígio.
Como recorda Fleischer, "ajudou muito a consertar o estrago" na pasta –
a relação entre o ministro anterior, o diplomata José Viegas, e as
Forças Armadas foi bastante turbulenta.
Pereira, da FGV, vê na medida adotada por Lula – a de transformar um vice em ministro – algo "complicado" de se fazer.
"Se por um lado pode ser importante você dar uma função concreta e mais
substantiva para um vice", analisa, "por outro isso é arriscado do
ponto de vista de organização de governo".
Ele exemplifica: "Imagine um desastre econômico, ambiental, algo que
afete algum ministério diretamente e gere pressão para substituição do
ministro. É sempre mais complicado substituir um ministro que é também o
seu vice-presidente".
Fleischer lembra que o caso de Dilma foi bem diferente do de Lula – ela
só lançou mão do vice na articulação política por "desespero", diz.
E que é importante lembrar que o peemedebista aparenta ter ambições bem maiores que a de seus antecessores no Palácio Jaburu.
Trata-se agora, diz, de um embate entre um "político profissional" – Temer – e uma "política amadora" – Dilma.
"Essa é a única chance de o PMDB pegar a Presidência: se Dilma cair fora. O partido não tem candidato viável para 2018", opina.
http://noticias.terra.com.br/brasil/vice-decorativo-as-diferencas-entre-o-papel-de-temer-e-o-de-seus-antecessores,9140f5b3eb339032311e8b2a53220880nv3cdsqm.html