terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ex- detentos desconfiam de fim de "camps de reeducação" na China

Ex-detentos desconfiam de fim de 'campos de reeducação' na China

Para eles, governo usará outros meios para prender cidadãos 'incômodos' sem ter justificativa
Anúncio foi feito pelo governo recentemente, dentro de um projeto de reformas no país; havia 260 campos na China
MARCELO NINIO DE PEQUIM
Entre as reformas anunciadas recentemente pelo Partido Comunista, uma decisão tocou fundo na instável sensação de justiça dos chineses: a abolição dos odiados campos de trabalho forçado.
Criado em 1957, o sistema do "laojiao" (reeducação pelo trabalho, em mandarim) permite à polícia prender qualquer pessoa sem julgamento, por até quatro anos.
A decisão do governo de abolir os campos era esperada há tempos e foi comemorada por ativistas de direitos humanos como um passo para dar maior transparência ao sistema legal chinês.
"Os campos de reeducação são obviamente ilegais e deveriam ter sido abolidos há muito tempo", diz Zhang Qianfang, professor de direito constitucional da Universidade de Pequim.
Mas a notícia também foi recebida com desconfiança por muitos, principalmente entre ex-detentos. Eles temem que a mudança vá ser apenas cosmética.
Geralmente usado contra quem comete pequenos crimes, como uso de drogas e roubos, o "laojiao" também tornou-se um instrumento de repressão aos que protestam contra atos que consideram injustos, como desapropriações de terras.
A comerciante Zhao Guifen, 50, foi parar num desses campos no ano passado, após uma saga iniciada em 1997.
Entre pausas para segurar o choro, Zhao contou à Folha sua longa história, em um modesto hotel de Pequim.
Ela se assemelha aos relatos de milhares de chineses que recorrem ao milenar sistema de petição, buscando a intervenção do governo central para reparar injustiças cometidas por cortes locais --quase sempre sem sucesso.
Natural da Mongólia Interior, província no norte do país, Zhao e o marido tinham um caminhão para o transporte de carvão. Era o seu sustento. Um dia o veículo se envolveu num acidente, e o casal foi parar num tribunal.
Mas o outro motorista ganhou a causa porque era sobrinho do promotor, afirma Zhao. O juiz cassou a licença do caminhão e tirou o ganha-pão do casal. Apelos na justiça da cidade e da província não deram em nada.
Ela decidiu recorrer ao sistema de petição em Pequim. Quinze anos de idas e vindas não devolveram a licença do caminhão, mas despertaram a ira de autoridades de sua província.
ESPANCADA E PRESA
Em março de 2012, quando preenchia mais um formulário numa repartição em Pequim, Zhao foi arrastada por quatro pessoas para um carro e levada de volta a sua província. No caminho, foi barbaramente espancada.
Com hematomas por todo o corpo e problemas cardíacos, ficou internada 17 dias num hospital. Após receber alta, porém, voltou a ser detida. Desta vez, foi mandada para um campo de reeducação pelo trabalho.
Sem julgamento e sem saber do que era acusada, passou 168 dias no campo. Por protestar, foi punida várias vezes. "Me algemavam, mandavam levantar as pernas e me deixavam deitada com as costas nuas no chão frio."
Ao ser libertada, processou os policiais que a enviaram para o campo, mas perdeu novamente. O juiz considerou sua prisão justificada, porque ela mordeu um policial que tapou sua boca.
O anúncio de que os campos de reeducação serão abolidos veio tarde para Zhao. Tampouco a convence de que a medida evitará a repetição de histórias como a sua.
"Só mudará o nome. Acaba o laojiao, mas o governo certamente manterá prisões com outros nomes para deixar a polícia punir sem julgamento", diz ela.
No início do ano, a China tinha 260 campos de reeducação com 160 mil detentos, de acordo com o Ministério da Justiça. A reforma do "laojiao" entrou em vigor logo após o anúncio. Em Xangai, por exemplo, todos os campos já foram fechados.
Guo Xuebao, que em 2005 deixou o cargo de editor de um jornal na província de Shanxi (centro) e criou um sítio na internet para dar assessoria legal a peticionários, também não acredita que seja para valer.
"Na prática continuarão existindo prisões sem julgamento, só que passarão a chamar de clínica psiquiátrica ou de reabilitação", diz Guo.